Sem nenhum receio de parecer um franguinho, lhes digo: tenho medo do MiG-25. MiG é acrônimo formado por Mikoyan-Gurevich, nome de firma de projetos fundada por Artem Mikoyan e Mikhail Gurevich em 1939. Basta olhar para ele em fotos. Assistir alguns vídeos desta máquina no YouTube me deixa com arrepios na espinha. É como encarar um capeta voador, com o agravante de que sua autonomia é pequena, então, se tem a certeza que se ele atacar, vai ser rápido para não perder tempo. Pior que um tubarão, que cerca e circula a vítima para que ela esvazie o intestino antes do prato ser devorado.
Como ocorria com todo avião soviético até o final da Guerra Fria, a Otan, ou Nato em inglês — Organização do Tratado do Atlântico Norte — batizava qualquer nova aeronave que surgisse, antes mesmo da designação oficial ser divulgada. O MiG-25 foi chamado de Foxbat, o morcego gigante com cabeça de raposa que come basicamente frutas, e pode atingir até 1,70 metro de envergadura. Apesar de assustador, é mansinho, diferente do avião.
O Foxbat fabricado pelo homem foi feito para pegar a presa na primeira. E sua presa eram os bombardeiros americanos.
É interessante entender o porquê de fazer um projeto de um avião de alta velocidade com alcance tão pequeno, 1.730 km para interceptação, e pouco mais de 2.500 km para viagem de um ponto ao outro (ferry flight).
O MiG-25 chega a Mach 2,83. Botando para quebrar, Mach 3,2 (3.500 km/h mais ou menos). Dizia-se que essa velocidade podia ser atingida, mas com um razoável risco de danos aos motores.
O Foxbat foi concebido para interceptar o bombardeiro que deixara os soviéticos com receio da continuidade de suas existências terrenas, o North American XB-70 Valkyrie, o avião que representaria a epítome da vontade e poder americanos em destruir o inimigo comunista.
Valquírias são as entidades divinas nórdicas, espécie de secretárias de Odin, que vêm buscar os guerreiros que perecem em combate e levá-los ao Paraíso. São elas que escolhem quem vive e quem morre. O nome havia sido escolhido na medida certa para essa época maluca, a Guerra Fria nuclear da década de 1960.
O MiG-25 foi desenvolvido para decolar e atacar o B-70, caso ele tivesse saído do estágio de protótipo experimental, daí o “X” na designação inicial, voando a perto de três vezes a velocidade do som, e retornar à base com a missão cumprida rapidamente. Num cálculo rápido, 3.000 km/h para 1.700 km de autonomia não dá muito mais de 20 minutos de vôo, mas é claro que o avião não voaria o tempo todo nessa velocidade.
Pegar o B-70 no seu elemento requeria altitude, muita altitude a ser atingida rapidamente. O XB-70 nos vôos que fez, foi creditado com altitude de ataque por volta de 75.000 pés, 23 km acima da superfície da Terra, e a maior velocidade atingida nos seis anos de desenvolvimento foi de 3.250 km/h. Um negócio monstruoso em todos os sentidos, quando se considera os 10 a 12 km de altitude de cruzeiro de vôos comercias, e os 19 a 20 km do solo em que voava o Concorde.
Mas o MiG-25 voava um bocado mais alto que isso. As altitudes atingidas pelo Mig-25 são estonteantes, note alguns recordes registrados, entre outros em várias categorias.
Carregando carga de uma tonelada, chegou a 35.230 metros em 1973, em altitude sustentada, ou seja, sem ser um ponto mais alto de uma trajetória, mas sim, voar uma certa distância sem perder essa altitude.
Numa trajetória parabólica, subindo tudo que dá para depois começar a descer, em 1977 foram atingidos os 37.650 metros, num protótipo com várias melhoras, entre elas motores de maior empuxo, chamado de Ye-266M.
Ainda mais impressionantes são os tempos de subida, o fator-chave para um interceptador. Em 4 de junho de 1973 foram estabelecidos três recordes que duraram por muitos anos. Um piloto marcou um tempo de subida do solo até 20.000 metros, e um outro 25.000 e 30.000 metros. O primeiro em 2 minutos, 49 segundos e 8 décimos, e o outro em 3 minutos, 12 segundos e 6 décimos para os 25.000 e 4 minutos, 3 segundos e 9 décimos para os 30.000 metros.
Trinta quilômetros em pouco mais de 244 segundos dá 442 km/h de velocidade vertical. Essa medida é a razão de subida (climb rate), normalmente expressa em pés por minuto na aviação. Mas para nós imaginarmos e enxergarmos, melhor em quilômetros por hora mesmo.
Os russos haviam iniciado o conceito em 1958, após os americanos terem anunciado o Convair B-58 Hustler, bombardeiro nuclear Mach 2, e já se tinha a informação que estava em progresso o projeto do XB-70, considerado uma ameaça mais grave ainda, pois voaria a três vezes a velocidade do som. Mas como cachorro picado de cobra tem medo de lingüiça, mesmo após o cancelamento do XB-70 em prol dos mísseis balísticos intercontinentais (ICBM), o MiG-25 continuou a ser desenvolvido, pois a ameaça agora era o SR-71, o avião de reconhecimento que entrou para a história como o mais veloz de todos.
A entrada em serviço normal com a VVS, a Força Aérea Soviética — Voyenno-Vozdushnye Sily— foi em 1970, e para isso a Marinha americana fez voar o F-14 Tomcat, que se não chegava a Mach 3, ao menos tinha os absurdamente poderosos mísseis ar-ar Phoenix, que chegam a cinco vezes a velocidade do som.
O MiG-25 não existiria sem o Valkyrie (como o Thunderbird não existiria se não fosse o Corvette e este não continuaria se não fosse o Thunderbird…), já que os bombardeiros anteriores dos americanos eram fichinha para ele, menos o B-58 Hustler, mas esse nunca foi colocado em serviço a partir de bases fora dos Estados Unidos, o que dava aos soviéticos uma relativa tranqüilidade.
Também houve influência dele no programa do F-15 Eagle da McDonnell Douglas, que teve vários objetivos de desempenho revisados após os números espionados e conseguidos dos russos.
A rede de influência dos dois lados não parava, com respostas às ameaças do inimigo feitas da melhor maneira possível: com engenharia.
Havia muita conversa incerta sobre o MiG-25, antes que ocorresse um fato que está entre os mais interessantes de todos os ocorridos na história política da aviação militar.
Em 6 de setembro de 1976, uma notícia como já não acontece mais correu o mundo. O piloto tenente Viktor Belenko desviou sua aeronave da missão normal, e pousou no Japão, se entregando às autoridades militares do aeroporto civil de Hakodate.
Belenko não conhecia a pista, e acabou parando o MiG apenas depois do final dela, estourando alguns pneus. Para começar o trabalho de investigar o avião, ele foi deslocado o mínimo possível e uma cobertura em torno, para que ficasse longe dos olhos dos curiosos e dos russos, foi construída.
O piloto soviético pediu asilo aos Estados Unidos, no que foi rapidamente atendido pelo presidente à época, Jimmy Carter. Depois de todos os interrogatórios da CIA, obviamente.
Belenko conta toda sua história no livro “MiG Pilot”, com co-autoria de John Barron. Durante sua adaptação à vida americana, Belenko conheceu Charles “Chuck” Yeager, o primeiro homem a romper a barreira do som, e se tornou amigo pessoal deste, dividindo o gosto pelas caminhadas, pescarias, caçadas e acampamentos em locais sem civilização.
O trabalho de análise do MiG-25 requereu desmontagem de vários componentes, e bastante informação foi levantada, o que acabou de vez com alguns mitos sobre o avião.
Uma das coisas descobertas é que a grande área alar (de asas) não era devido à capacidade de manobra, mas sim para gerar a sustentação necessária para elevar o peso do avião, 29 toneladas desarmado, resultado das ligas de aço com níquel utilizadas extensamente, no lugar do suposto titânio como os americanos supunham.
Havia também muita rebitagem, rebites normais com cabeça exposta, nos locais onde não afetasse o arrasto aerodinâmico.
Descobriram-se várias coisas interessantes sobre o avião, que aparentava ser muito melhor do que se averiguou. Uma delas era a resistência da estrutura a manobras com altas acelerações da gravidade. O limite seguro é de 2,2 g positivos, com limite sem danos de 4,5 g, nada excepcional para aviões militares.
Raio de combate era de 300 km, considerando decolagem rápida e grande subida para interceptação e retorno à base. Num avião dessa velocidade, pífio.
Os motores são os Tumansky R-15 em várias versões, turbojato, o tipo de motor a reação mais antigo que existe. Empuxo máximo com pós-combustão de 10.200 kgf, sem pós-combustão 7.378 kgf
Peso vazio do 25 é de 20.000 kg, com o máximo de decolagem marcando 36.720 kg, carga alar 598 kg/m², monstruosa, explicando a baixa manobrabilidade.
Os mísseis mais usados são os R-40 ou AA-6, com alcance entre 35 e 60 km. Bombas não guiadas, de estilo antigo de queda livre são usadas, mas com muito arrasto adicional, já que são montadas nos cabides das asas, não em compartimentos internos.
A linha vermelha marcada no velocímetro começa a Mach 2,8, os 3,2 propalados sendo apenas para emergências, com o risco de danificar motores já comentado.
Nas asas e fuselagem, muita aplicação de aço inoxidável com níquel, ao em vez do titânio que seria o melhor para a aplicação de alta velocidade, onde o atrito com o ar aquece demais as superfícies, normal ter entre 200 e 300°C nas extremidades do nariz, asas e empenagem, onde o ar bate de frente, voando a três vezes a velocidade do som. Além do custo do titânio, a soldagem do mesmo era uma tecnologia que os russos não dominavam, com muitos problemas encontrados nas experiências com chapas de pequena espessura, como precisariam ser usadas no MiG-25.
O resultado foi 80% do avião feito nessa liga aço-níquel, 11% em alumínio em áreas de menor temperatura, e 9% de titânio. As soldagens são por pontos, automatizada, e solda a arco voltaico manual.
As asas eram feitas basicamente com três longarinas, sendo seccionais na junção com o tanque de nariz, o mais à frente, e com os tanques centrais. Tanques todos em construção soldada, material VNS-2 e VNS-SHCH. As designações de materiais são desconhecidas para mim, cabendo a especialistas em construção mecânica soviética nos auxiliar nos comentários.
O nariz é também em aço, OT-4, soldado também. Ailerons e flaps em construção rebitada, com blocos em forma de colméia de abelha por dentro. Elementos com montagem de rolamentos são feitos em aço E0. Revestimento externo em materiais D-16 e D-19.
Mesmo sendo bastante convencional em sua construção, para facilitar a manutenção, as estatísticas mostraram que a cada 1.500 horas de vôo cerca de 10 a 15 elementos da estrutura precisavam ser trocados, e entre 1980 e 1988, houveram 15 mudanças estruturais, os famosos upgrades da aviação, o que fez as operações serem suspensas 15 vezes nas diversas forças aéreas que o utilizaram.
Os sistemas eletrônicos foram motivo de diversão e assombro por parte dos engenheiros ocidentais e mesmo japoneses. Havia diversas válvulas eletrônicas, principalmente no radar, que retribuía os risos com sua fenomenal potência, 600 kW, podendo detectar ameaças a centenas de quilômetros de distância, mas com um problema sério: não podia detectar alvos voando muito mais baixo, que era como o Comando Estratégico Aéreo (SAC) determinara a corrida final de ataque a alvos comunistas. Nesse ponto, os soviéticos se deram mal, pois o radar foi projetado para combinar com a missão do MiG-25, funcionar bem para grandes altitudes, o oposto do que o SAC estava fazendo no final da década de 1960. Isso foi corrigido na versão PD, com radar mais moderno e ainda mais potente, com a capacidade de procurar o inimigo voando bem mais baixo.
Havia, porém, muita lógica em usar válvulas eletrônicas em vez dos componentes de estado sólido que as sucederam, como os transistores. Os componentes mais antigos com vácuo em tubos de vidro são resistentes a maiores variações de temperatura, além de suportar pulsos eletromagnéticos elevados, como os que ocorrem em detonações de armas nucleares. Também, a substituição é muito mais simples, apenas se remove um e coloca outro no lugar, encaixado, não sendo necessária solda delicada como com transistores, ou como ocorre hoje, troca de placas inteiras por causa de um componente danificado. Muito mais lógico e robusto, portanto, apesar de ocupar espaço precioso.
Depois de mais de dois meses de análises, o avião foi devolvido, mas bastante desmontado. Foi um fato muito interessante e deve ter sido hilária a situação para as pessoas envolvidas nessa atividade de buscar e entregar o avião.
O melhor de tudo é que com os russos não havia miséria para armamentos naquela época e simplesmente foram feitos 1.190 aviões, considerando as diversas versões. Em 1984 foi construído o último MiG-25, que hoje ainda voam em pequeno número, com a maioria já desativada.
Após a deserção de Belenko, construiu-se uma versão com radar, motores e sistema de mísseis mais avançados, batizado de PD, e um desenvolvimento sucessivo levou a o que seria o MiG-25M, mas que foi cancelado devido à chegada do MiG-31, que nasceu de conceitos mais modernos e quase 15 anos mais novos.
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