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sábado, 5 de abril de 2025

A incrível história de como a Aeroflot quase operou Lockheeds e Boeings durante a Guerra Fria

 Aeroflot Guerra Fria

Um dos casos mais curiosos e interessantes da Guerra Fria relacionada à aviação comercial foi o estranho caso do interesse de compra da União Soviética de aeronaves de fabricação ocidental. Ora, pode parecer estranho que a URSS buscaria uma solução para seus problemas domésticos em seus grandes rivais políticos e militares, especialmente os Estados Unidos, mas essa foi a verdade em alguns momentos dos anos 70 e 80.

Bem, essa história tem seu ponto inicial no final dos anos 60. A União Soviética passava por um de seus raros períodos de razoável estabilidade econômica e financeira, com os primeiros anos do governo de Leonid Brezhnev se provando essenciais nessa retomada.

Tal reestruturação da cúpula e políticas do governo também tinha seu impacto na sociedade soviética como um todo, que atingia uma população recorde de mais de 241 milhões de habitantes em 1970, que, mais do que nunca, necessitavam de meios de transporte eficientes para se deslocarem entre as extensas dimensões da URSS.

Enquanto ferrovias e estradas, apesar de precárias, davam conta dessa demanda, a aviação de carreira soviética era outra história. Negligenciada durante anos, o Governo Soviético foi pego de surpresa quando uma grande demanda por transporte aéreo de longa distância começou a surgir na segunda metade dos anos 60, uma tendência até então praticamente inexistente no país.


Para supri-la, o governo soviético logo percebeu que teria que apelar para a indústria aérea soviética, que respondeu com o lançamento do Ilyushin Il-62 em 1967, o primeiro avião a jato de médio e longo raio comercial da URSS. Apesar desta aeronave solucionar as deficiências iniciais da aviação comercial soviética, logo ficou claro que isso era apenas um tapa-buraco em um cenário bem mais alarmante,

As autoridades soviéticas perceberam que era necessário algo mais, uma aeronave de alta densidade que pudesse atender durante as próximas décadas o aumento exponencial no número de passageiros dentro dos países do Pacto de Varsóvia.

IL-62
Apesar de serem pouco econômicos, os Il-62 prestaram um serviço inestimável à URSS, visto as dimensões continentais do país. Créditos: Wikimedia Commons

Para tanto, ainda em outubro de 1967, o Ministério da Aviação Civil Soviético (Aeroflot) divulgou as especificações do projeto “aerobus”. A aeronave teria que ter 350 assentos e um alcance de 3.600 quilômetros (1.900 milhas náuticas) com uma carga útil de 40 toneladas ou 5.800 km (3.100 milhas náuticas) com assentos ocupados, mas sem carga. Além disso, a aeronave teria que operar em aeroportos com de pistas de até 2.600 metros.

Após uma efêmera concorrência com a Tupolev, a Ilyushin ganhou a dianteira no processo de desenvolvimento da nova aeronave, que viria a ser designada Il-86. Apesar de um rápido progresso inicial, devido ao reaproveitamento de vários elementos do Il-62 no novo design, a Ilyushin se encontrou em uma encruzilhada em meados de 1971.


Depois de redesenhar toda a aeronave a pedido do governo soviético, com o projeto saindo de um “super Il-62” para um grande widebody, o primeiro deste tipo fabricado na URSS, a Ilyushin percebera que não existia um motor capaz de impulsionar a nova aeronave em todo território soviético.  E, para encontrar uma solução para o problema, a Ilyushin e a Aeroflot tiveram que se virar para seu grande inimigo: os Estados Unidos.

No começo dos anos 70, a indústria americana já havia assumido a ponta no desenvolvimento de aeronaves comerciais, com Boeing, McDonnell-Douglas e Lockheed encabeçando esse processo e tendo seus produtos exportados para diversas nações.

Os soviéticos, em uma manobra de diplomacia e relações públicas (vinculadas a seus próprios interesses) começaram então a sondar a possibilidade de uma das empresas americanas estarem interessadas em vender aeronaves ou, até mesmo projetos, para fins civis da Aeroflot. E, por incrível que possa parecer, quase todas as empresas americanas se interessaram pela proposta dos soviéticos.

No entanto, quem foi mais rápida em capitalizar com o convite foi a Lockheed, que se comprometeu a levar um novíssimo L-1011 TriStar para um voo de demonstração na própria União Soviética em março de 1974. Tal acordo não sofreu nenhuma interferência dos governos americano e soviético, que não viam grandes problemas em tal empreitada.




Os soviéticos ficaram impressionados com o TriStar assim que ela pousou em Moscou, e logo demonstraram um interesse genuíno na aeronave, inclusive fazendo um pedido de 30 L-1011 para equipar a frota da Aeroflot. Além disso, os soviéticos demonstraram-se extremamente interessados em negociar inclusive uma patente de fabricação da aeronave, buscando uma solução mais rápida e barata ao desenvolvimento vagaroso do Il-82.

TriStar L-1011
O TriStar que participou da expedição à URSS em 1974 era um L-1011-1, pertencente à companhia Court Line Aviation. Créditos: Flickr

Outro detalhe interessante que ajuda a compreender a decisão dos soviéticos é que, mesmo que o projeto do Il-82 continuasse em frente naquele momento, a linha de produção seria restringida a 10-12 aeronaves por ano. Com a compra dos 30 TriStar, esse problema seria rapidamente remediado.

A notícia alegrou a própria representação da Lockheed, que firmara um lucrativo acordo, que seria bem vindo as finanças da empresa após os grandes gastos no desenvolvimento do TriStar.

No entanto, não demorou para que a proposta fosse por água abaixo. Primeiramente pelos britânicos, que se recusaram veemente a fornecer os motores Rolls-Royce RB.211 que viriam a equipar os TriStar da Aeroflot. Muito provavelmente essa decisão foi uma reminiscência do que acontecera da última vez que os ingleses cederam um motor a jato (o Rolls-Royce RB.41 “Nene”) aos soviéticos.



No entanto, a desculpa oficial da Rolls é de que a União Soviética não dispunha de indústrias que pudessem consertar e manter os motores em condições mínimas de segurança estipuladas pela fabricante.

O segundo golpe ao acordo veio por intermédio da Câmara de Comércio dos Estados Unidos, que negou uma permissão para que a Lockheed e a General Eletric fornecessem uma fonte alternativa de propulsão, os GE CF-6-50, devido a restrições comerciais e evoluções políticas nos EUA.

Sem os motores, que, para os soviéticos, eram a parte mais importante do negócio, não havia mais o porquê de negociar com a Lockheed, que poderia apenas fornecer agora a carcaça dos L-1011. Assim, o acordo foi por terra no final de 1977.

Aeroflot
Um dos únicos registros conhecidos de como poderia se parecer o L-1011 da Aeroflot é essa maquete, preservada – estranhamente – em um restaurante temático em Miami. Créditos: Desconhecido

Mas essa não seria a última história entre aeronaves americanas e o governo soviético durante a Guerra Fria.



Em fins de 1989, a Aeroflot se voltou novamente para os seus antigos rivais americanos. Em um cenário completamente diferente daquele dos anos 70, o Il-86 havia saído do papel, a aviação comercial soviética se expandira sensivelmente e a URSS estava se desfazendo politicamente, à medida que a Perestroika e outras medidas de grande escopo tentavam salvar o país de uma catástrofe econômica.

Nesse cenário de apertar os cintos e reduzir custos, a própria Aeroflot também teve que entrar nesse regime restrito de contenção de gastos – isso significava principalmente a racionalização operacional, além da substituição de aeronaves pouco econômicas por modelos mais eficientes.

Para ilustrar a situação, havia um ditado que dizia que o Ilyushin Il-86 (que agora formava a espinha dorsal dos voos de longa alcance da Aeroflot) mal tinha o tamanho de um DC-10, com o consumo de combustível de um Antonov An-124; em outras palavras, as aeronaves comerciais soviéticas eram prejuízo garantido.

E, em uma economia de livre-mercado, como aquela proposta pela Perestroika, isso seria fatal para a aviação comercial soviética.

Assim, o caminho encontrado foi novamente ir para o Ocidente, em busca de uma solução. Em nova consulta com as fabricantes americanas, para uma aeronave de grande raio e mais eficiente economicamente, a Boeing surgiu como principal interessada no projeto soviético.

Pelo pouco que se sabe sobre a transação, devido ao caos que se instalava na União Soviética, a Aeroflot estabelecera um acordo inicial para arrendar 10 747-400 para voos internacionais e de alta densidade da companhia, suplantando os ineficientes Il-62 e Il-82.

Boeing 747-400 Aeroflot
O acordo entre Aeroflot e Boeing para o arrendamento de alguns 747-400 chegou perto de se converter na primeira parceria URSS/EUA no campo da aviação durante a Guerra Fria. Créditos: Boeing

Obviamente, o acordo acabou não saindo do seu estágio de conversação, devido à deterioração interna da URSS no final de 1989.

Assim, a última chance da Aeroflot operar aeronaves ocidentais ainda no período soviético foi por água abaixo. Seria somente em 1992, já sobre a égide da recém-criada federação russa que a Aeroflot viria a operar suas primeiras aeronaves originárias de países estrangeiros: os Airbus A310-300.

Demoraria mais dois anos até que a aliança entre Aeroflot e as construtoras de aeronaves americanas fosse finalmente concluída, com a empresa de carreira russa adicionando os primeiros Boeing 767-300ER em sua frota no ano de 1994.

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