Entre as décadas de 1930 e 1950, a Argentina viveu um período de alto desenvolvimento na área aeronáutica, com projetos originais e algumas ideias que países vizinhos na América do Sul ainda nem sonhavam ser possíveis com o que dispunham. Um desses conceitos era o avião com motor a jato, tecnologia que os argentinos dominaram já nos anos 1940.
Diferentemente do Brasil, que enviou tropas para lutar na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, a Argentina ficou de fora do conflito – o país declarou guerra contra a Alemanha na parte final do combate. Mesmo assim, os hermanos conseguiram valiosos “espólios” de guerra: alguns dos engenheiros aeronáuticos mais brilhantes do período pós-guerra.
O primeiro especialista que chegou a Argentina foi o lendário engenheiro francês Émile Dewoitine, conhecido pelo projeto do Dewoitine D.520, considerado o melhor caça francês da Segunda Guerra Mundial.
Após a Alemanha invadir a França, em 1940, Dewoitine fugiu para a Espanha, onde ficou exilado até o final de 1945. Foi nessa época que recebeu um convite do governo de Juan Domingo Perón, então presidente da Argentina, para trabalhar no país.
Pulqui I
No dia 9 de agosto de 1947, decolou o primeiro protótipo de avião com motor a jato fabricado na Argentina, o FMA I.Ae. 27 Pulqui I. Projetado por Dewoitine, que já possuía rascunhos de uma aeronave desse tipo (o “D.700”) e montado nas instalações da Fábrica Militar de Aviones (FMA), o Pulqui I voou justamente na época em que outros projetos nessa área davam seus primeiros passos na Europa e Estados Unidos, como Gloster Meteor e o Lockheed P-80.
A Argentina foi a sétima nação a desenvolver um avião a jato na história, depois de Alemanha, Inglaterra, EUA, União Soviética, Japão e Suécia.
E o protótipo argentino fez jus ao nome Pulqui, que significa “flecha” no idioma indígena Mapuche. Equipado com um motor turbojato Rolls-Royce (modelo Derwent 5), o avião argentino podia voar a velocidade máxima de 720 km/h e alcançar até 15.500 metros de altitude, até então um desempenho ainda inédito entre os países da América Latina.
O Pulqui I tinha o típico design dos caças do final da década de 1940 e 1950. Esses aviões eram basicamente construídos ao redor de seus motores, por isso a característica entrada de ar avantajada na parte frontal, e ainda tinham asas retas, o que limitava a velocidade máxima – mas os engenheiros ainda não sabiam muito bem como contornar essa situação.
Proposto como caça-interceptador, o Pulqui I, porém, nunca entrou em operação. Seu desempenho foi considerado abaixo das expectativas e, em 1951, o programa de testes foi encerrado. Apenas um protótipo foi construído. Esse modelo hoje está exposto no Museo Nacional de Aeronáutica de Argentina, em Buenos Aires.
Pulqui II
Assim como o Pulqui I, o segundo jato argentino, o Pulqui II, foi desenvolvido com a ajuda de outro engenheiro estrangeiro, desta vez o alemão Kurt Tank. Após a Segunda Guerra Mundial, Tank foi um dos especialistas mais disputados: recebeu propostas para trabalhar na Inglaterra, China e União Soviética, mas acabou escolhendo a Argentina.
O engenheiro alemão, que tinha no currículo participações em projetos como o do caça Fw 190 e o avião de passageiros Fw 200 Condor, chamou a atenção dos argentinos (e as outras nações que o disputavam) por já ter uma “carta na manga”: o projeto do caça Focke-Wulf Ta-183, que previa motorização a jato. Só faltava construí-lo.
Mesmo não sendo considerado criminoso de guerra, Tank viajou para a Argentina, em 1947, com documentos falsos emitidos pelo próprio governo da Casa Rosada. O alemão chegou ao país com o nome falso “Pedro Matthies” e trazia consigo outros 62 compatriotas.
O projeto do Pulqui II também foi realizado nas instalações da FMA, em Córdoba, mas este era bem mais complicado. Tank redesenhou a ideia do Ta-183, uma caça para situações de emergência, e sugeriu uma aeronave de superioridade aérea com longo alcance.
O primeiro voo do Pulqui II, após quase três anos de desenvolvimento, aconteceu em 27 de junho de 1950. E quem pilotou o protótipo foi justamente Kurt Tank, que também era piloto de testes.
O novo jato argentino tinha motor mais potente (o turbojato Rolls-Royce Nene II) e as novíssimas asas enflechadas, o que pulverizou os números do Pulqui I. O modelo projetado por Tank podia voar a velocidade máxima de 1.080 km/h e alcançar 15 mil metros de altitude. Mas o que mais chamou atenção foi seu alcance, que podia passar dos 3.000 km.
Supersônico argentino
Outro brilhante engenheiro aeronáutico “importado” pela Argentina foi o alemão Reimar Horten. Junto de seu irmão Walter (que não foi para a Argentina), Reimar desenvolveu um dos aviões mais misteriosos da Segunda Guerra Mundial, a asa voadora HO 229. Emigrou para a América do Sul após o conflito e foi contratado pela FMA, onde desenvolveu o I.Ae 37, de performance supersônica. Diferentemente dos modelos da série Pulqui, o projeto de Horten, apesar de ambicioso, nunca voou. Um modelo com asa delta foi construído em 1953, mas sete anos depois o projeto também foi cancelado. Diferentemente de Dewoitine e Tank, que deixaram a Argentina após o cancelamento de seus projetos, Reimer Horten ficou no país até sua morte, em 1994.
Uma tentativa de demonstrar o alcance surpreendente do Pulqui II acabou num acidente. Em 1956, a FMA propôs voar com o aparelho entre Córdoba até Buenos e depois retornar, sem realizar paradas para reabastecimento. Na última perna do voo, porém, o sistema de geração de oxigênio da aeronave falhou e o piloto, mesmo semi-consciente, conseguiu realizar um pouso de emergência, deixando o protótipo irrecuperável.
Foram construídos cinco protótipos e dois deles foram perdidos em acidentes fatais. Embora os detalhes sejam desconhecidos, sabe-se também que um protótipo do Pulqui II foi utilizado em combate real contra manifestantes durante a Revolucion Libertadora, que destituiu o presidente Perón em 1955 e iniciou a longa ditadura militar argentina.
O projeto do segundo jato argentino acabou se misturando à crise econômica e política que foi instaurada no país nos anos seguintes. Houve cortes no orçamento, demissões de especialistas e um dos golpes mais duros foi a conversão de parte das instalações da FMA em fábrica de automóveis, caminhões e motocicletas. Desta forma, o Pulqui II acabou abandonado em 1960.
Os dois protótipos do Pulqui II que sobreviveram estão expostos nos museus aeronáuticos de Buenos Aires, junto ao Pulqui I, e Moron. Com o fim das “flechas” argentinas, um novo e avião a jato seria desenvolvido na América do Sul apenas nos anos 1980 e pela Embraer
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