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segunda-feira, 6 de março de 2017

Os frios números do Boeing 707 na Varig




Agradecemos ao nosso amigo piloto e escritor,  Enderson Rafael, que novamente colabora com o Blog Segurança da Aviação Civil, dessa vez com o texto: "Os Frios números do Boeing 707 na Varig", no qual conta um pouco da história dessa aeronave e relata os vários acidentes envolvendo aviões Boeing 707 na Varig. 
Vale a pena conferir, segue o texto na íntegra:





Os frios números do Boeing 707 na Varig Enderson Rafael Ninguém duvida da importância que a Varig teve na história da aviação brasileira, e por mais que atos maquiavélicos tenham catapultado seu sucesso e administrações desastrosas tenham decretado seu fim, sua marca será para sempre lembrada, mesmo quando dentro de alguns meses deixar os céus definitivamente, seja pelos que a amam ou pelos que a odeiam. E por conta disso, este artigo soará indigesto para muita gente, porque toca na ferida de uma reputação religiosamente construída ao longo de décadas. Embora a Varig tenha tido muitas dezenas de acidentes na sua história, numa média surpreendente de quase um a cada dois anos, um equipamento em especial teve um legado complicado. O Boeing 707, um dos aviões mais importantes da aviação mundial e da frota da empresa. Tendo vencido no começo da era do jato, no final da década de 1950, seu oponente Douglas DC-8, o 707 significou a virada para a Boeing, numa hegemonia que só seria perturbada décadas depois pela europeia Airbus. A história do Boeing 707 na Varig começa em 1957, quando foram encomendadas as duas primeiras aeronaves por medo da companhia brasileira de que a Pan Am colocasse os jatos na rota Rio-Nova Iorque, na época operada com os belos porém lentos Lockheed Constellation. O primeiro avião só chegou em junho de 1960, e do PP-VJA até o último a deixar a companhia, o PP-VLO, em janeiro de 1990, foram mais de 29 anos de serviço levando o nome da Varig e do Brasil mundo afora, transportando reis e plebeus por todos os continentes. No total foram fabricadas 1012 aeronaves Boeing 707, das quais 172 tiveram perdas totais, 147 delas em acidentes - as restantes foram perdidas em sequestros e outras ações criminosas. Logo, numa conta simples, chegamos à conclusão de que 14% das aeronaves deste modelo foram perdidas em acidentes no mundo, com 2737 fatalidades e uma taxa de sobrevivência de 24% dentre os ocupantes das aeronaves acidentadas. Em todo tipo de operação, desde as empresas mais conhecidas até as mais obscuras. Só para comparar com níveis atuais de segurança, o Boeing 777 está em operação há 20 anos, e só tivemos três perdas totais, com apenas 3 fatalidades, numa taxa de sobrevivência bem acima de 99%. Qual é o lugar da Pioneira nesta estatística? Até que ponto seus acidentes foram apenas um reflexo do seu tempo? Em agosto de 1961, a Varig assumiu a Real Aerovias, e entre as linhas da companhia estava uma ligando Rio de Janeiro e Los Angeles. Em novembro daquele ano, a Varig colocou o Boeing 707 nessa rota, com escalas em Lima, Bogotá e Cidade do México. Um ano e nove dias depois, ocorreu a primeira grande tragédia da Varig na era do jato: na madrugada de 27 de novembro de 1962, a tripulação do PP-VJB cometeu um erro de navegação na aproximação para o aeroporto de Lima-Callao, no Peru, e a aeronave se chocou com uma montanha, vindo a matar todos os 80 passageiros e 17 tripulantes, o que abalou a logística e a imagem da empresa de maneira furtiva e drástica. Mas a Varig se recuperou. Em 1965, a Panair do Brasil foi fechada pelo governo de maneira mal explicada até hoje e suas rotas e aviões entregues à Varig, e com os DC-8 e as rotas internacionais da companhia verde e amarelo, a Varig expandiu-se como nunca antes, e levaria mais três anos até uma nova perda. E foi de maneira tola, quando um mecânico da empresa, na base de manutenção no Galeão, resolveu lubrificar as conexões das garrafas de oxigênio com graxa, causando uma combustão espontânea que incendiou o PP-VJR e causou sua perda. Mas 1973 seria um ano especialmente ruim para o equipamento na Varig: na aproximação para o Aeroporto Internacional do Galeão, o Boeing 707 proveniente de Viracopos apresentou problema nos spoilers e o PP-VLJ caiu no mar: era um voo cargueiro e dois dos quatro tripulantes morreram. Pior, bem pior, seria pouco mais de um mês depois, quando num incêndio que se iniciou em um dos toaletes - provavelmente por um cigarro - e não conseguiu ser apagado a tempo pelos comissários, o PP-VJZ precisou fazer um pouso de emergência fora da pista antes de chegar em Orly, em Paris. Dos 117 passageiros a bordo, apenas um sobreviveu, ao desmaiar perto da porta dianteira do avião. Os demais morreram pela fumaça tóxica. Dos 17 tripulantes, 10 sobreviveram, refugiando-se na cabine de comando. Seis anos se passaram até que tivéssemos o famoso sumiço do PP-VLU, que decolou de Narita num voo cargueiro com destino a Los Angeles, e logo após a comunicação com os orgãos de controle de tráfego aéreo, sumiu para sempre na noite do Oceano Pacífico. Nunca mais encontrou-se vestígio do avião ou dos seus cinco ocupantes - entre eles o comandante sobrevivente do voo de Orly - mas o histórico da aviação mundial sugere que uma despressurização lenta seja uma boa hipótese, acobertada pela imensidão de um oceano que cobre quase metade do planeta. Dois anos se passaram até que outro voo cargueiro, o PP-VJT, que chegava ao aeroporto internacional de Manaus, saísse da pista debaixo de chuva e tivesse também perda total, sem ferir no entanto nenhum dos três tripulantes. O último grande acidente envolvendo o Boeing 707 na Varig aconteceu pouco antes de se encerrarem as atividade com esta aeronave na companhia. Em 1987, pouco após decolar de Abdijan, na Costa do Marfim, a aeronave de prefixo PP-VJK perdeu um dos quatro motores. A tripulação resolveu retornar, e numa curva na noite escura, o diálogo ficou gravado na caixa-preta: o copiloto chamou a atenção do comandante "Olha a velocidade, olha a altura!" no que o mesmo respondeu "O meu horizonte (artificial) pifou". Não, o indicador de atitude do avião funcionava perfeitamente: a aeronave estava praticamente de cabeça pra baixo voando rumo à floresta, num clássico caso de desorientação espacial. Apenas um passageiro dentre todos os 50 ocupantes sobreviveu. No total, foram 20 aeronaves do modelo Boeing 707 de várias séries, operadas ao longo de quase três décadas. Destes, 7 foram perdidos - um em solo, no hangar - pela companhia num total de 279 vidas ceifadas. Nada menos que 35% da frota, ou seja, mais que o dobro da média mundial. E oito vezes mais que a contemporânea Pan Am, que perdeu meia dúzia de Boeing 707 em acidentes, mas ao invés de 20, operou 137 aeronaves do modelo. A mim não há desculpas que caibam para tão pífio histórico de segurança. É como se qualquer das duas companhias brasileiras líderes hoje em dia tivesse perdido 50 aviões na última década e meia. E elas são, cada uma, mais que uma vez e meia maiores que do que a Varig foi no seu auge. Tudo bem, há bem menos glamour, os salários e os destinos também não são tão bons. Mas é inegável o valor maior da aviação em qualquer tempo: elas têm padrões de segurança que também refletem sua época: hoje em dia, uma companhia perder um terço da frota em acidentes seria inadmissível. Por que não era antes?

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