O ano de 1958 foi emblemático na história da aviação comercial: iniciava-se para valer a era do jato na aviação civil e com ela toda uma série de mudanças de conceitos, seja do ponto de vista operacional, seja de conforto, estabelecendo novos patamares de desempenho e confiabilidade. Acima de tudo, foi o início da criação dos padrões de segurança na aviação, consolidando este modal como um dos mais seguros.
Embora o”avião a jato” já existisse desde o início da década de 1950, foi em outubro de 1958 que o Boeing 707 entrou em operação, aeronave que seria a mais bem-sucedida dessa época. Nesse mesmo ano o Douglas DC-8 da McDonnell Douglas realizou seu primeiro voo e a Consolidated Vultee Aircraft Corporation, ou simplesmente Convair, corria para colocar o seu modelo CV-880 no ar e não ficar para trás na era do jato da aviação comercial.
Entretanto, cumpre salientar que coube à britânica de Havilland a primazia de lançar a primeira aeronave a jato comercial do mundo, o Comet. O protótipo Comet 1 fez o primeiro voo ainda em 1949 e seu desenho era de uma elegância ímpar, com quatro motores de Havilland Ghost incrustados nas raízes das asas.
Entrou em operação em 1952 e sua perspectiva comercial era das melhores, visto que estava anos à frente de toda a concorrência. A primeira rota regular transatlântica com um avião a jato foi com o de Havilland Comet 1.
Mas o destino seria cruel com o Comet, que pagou o alto preço do pioneirismo. Após cerca de um ano em serviço regular aconteceram três catastróficos acidentes em voo em curto período. Dois foram causados por fadiga de metal na estrutura da fuselagem, um fenômeno desconhecido até então. Outro foi durante um voo sob severa turbulência, em que a fuselagem não resistiu aos esforços. O Comet 1 foi tirado de operação, iniciando-se uma das maiores pesquisas que se conhece na busca da causa.
Chegou-se a duas conclusões, uma, os cantos vivos das janelas geravam enorme tensão que acabavam se tornando rachaduras que não tinham como resistir à pressurização da cabine, que se desintegrava. Outra, a rebitagem das partes da fuselagem era defeituosa. Foi necessário reprojetar extensamente o Comet. As janelas passaram a ser ovais e reforços foram aplicados na estrutura, com a rebitagem corrigida. O interessante é que os concorrentes aprenderam uma lição que lhes seria de grande valia nos seus próprios projetos futuros.
O corrigido Comet 2 e o protótipo Comet 3 resultaram no Comet 4, lançado em 1958 — por isso eu falei no começo nesse ano como sendo emblemático, o do início efetivo da era do jato na aviação comercial.
Mas a carreira do Comet 4, embora durasse 30 anos, em razão do mau começo nunca foi o que se pode chamar de exitosa. Foram produzidas apenas 114 unidades, protótipos inclusive. Muitos foram adaptados para uso militar em transporte de passageiros, VIP e médico, bem como vigilância. A modificação mais extrema foi para patrulha marítima, o Hawker Siddeley Nimrod, que permaneceu em serviço na Força Aérea Real britânica até 2011.
O Comet 4 oferecia de 56 a 81 lugares, tinha peso máximo de decolagem de 71.000 kg e alcance de 2.802 milhas náuticas/5.190 km à velocidade de cruzeiro de 450 nós/520 mph/840 km/h, a uma altitude de 42.000 pés/13.000 metros. Seus motores eram turbojatos Rolls-Royce Avon Mk 524 de 10.500 lbf/46.706 N de empuxo.
Nesta sequência de três textos, falarei um pouco das três principais aeronaves dessa era, O Boeing 707, o DC-8 e o Convair 880/990 que, embora este tenha sido fabricado em quantidades ínfimas, tem um história de destaque e uma curiosa passagem por essas terras tropicais.
O Boeing 707
Experiente na aviação militar, a Boeing desde os meados dos anos de 1930 acabou perdendo destaque na aviação comercial com o surgimento do Douglas DC-3, resultado de uma demanda da Trans World Airways (TWA) que, necessitando de novos aviões, recebeu uma recusa da Boeing em fornecer aeronaves modelo 247 e com isso procurou fabricantes que se dispusessem a atender suas demandas.
Assim, a Boeing embora dominante no meio militar, na área civil patinava com seu 337 Stratocruiser que embora tenha tido destaque como reabastecedor aéreo da Força Aérea dos Estados Unidos, não alcançou o meio civil, que sempre preferiu os modelos da Douglas (a série DC-4/6 e 7) e Lockheed (Constellation, Super Constellation e Starliner).
O avanço da Boeing na era do jato produziu aeronaves de destaque como o B-47 e posteriormente o B-52, bombardeiros de elevada carga útil e autonomia, voando em velocidades superiores a quaisquer outros modelos da época. E foi justamente essa inovação que criou a demanda para novos aviões reabastecedores. Como os bombardeiros a jato voavam e altitudes e velocidades muito maiores que o KC-97 Stratocruiser (versão militar do Boeing 337), fazia-se mister que esses descessem de seu nível de voo, reduzissem sua velocidade para valores marginais de operação e, assim, pudessem ser reabastecidos e seguissem para sua missão.
Com isso o governo americano, em plena guerra fria, não poderia deixar de cuidar de suas missões de reabastecimento aéreo e lançou um edital para compra de aeronaves a jato. Dessa maneira, já no início dos anos de 1950 a Boeing chegou a propor o desenvolvimento de uma aeronave a jato para as companhias aéreas, tentativa prontamente fracassada, uma vez que as empresas àquela altura estavam satisfeitas com seus Lockheed Constellation, Douglas DC-4 e DC-6, e projetos baseados nessas aeronaves estavam prontos para sair do forno, como o Super Constellation e o DC-7.
E foi neste início de década de 1950 que a Boeing concluiu que se ela quisesse ter algum sucesso neste mercado ela teria de apresentar uma aeronave pronta e não apenas um conceito.
Neste contexto, em 1952 o conceito do modelo 367-80 foi aprovado pelo conselho da Boeing. Com recursos próprios, a empresa refinou o projeto e construiu a primeira aeronave, sendo que a sua apresentação, que ainda não era um protótipo voltado para certificação e sim uma aeronave-conceito, se deu em 15 de maio de 1954, com o primeiro voo ocorrendo exatamente dois meses depois, em 15 de julho de 1954.
Tratava-se de um quadrirreator de asa baixa com 35º de enflechamento, dotada de motores Pratt & Whitney JT3-C (versão civil do motor J57 dos primeiros Boeings B-52, Lockheed U-2, North American F-100 Super Sabre) com 10.000 lbf /44.482 N de empuxo cada. Com uma velocidade de cruzeiro de 550 mph (885 km/h), tinha cerca de 39 metros de comprimento com envergadura de também 39 metros.
O 367-80 ou simplesmente “Dash 80” (“Traço 80”) então passou a ser empregado em demonstrações para executivos da indústria do transporte aéreo. Também chamou a atenção da Força Aérea dos Estados Unidos para o emprego de reabastecimento em voo, que contratou, já em 1955, a fabricação de de 250 reabastecedores, uma vez que o projeto vencedor, o Lockheed L-193, um jato birreator ainda estava em projeto (enquanto a Boeing já tinha o conceito voando e plenamente operacional). Foi nessa época que ocorreu aquela que foi talvez, a mais notável demonstração aérea realizada por um avião a jato comercial.
No início de agosto de 1955 ocorria uma convenção em Seattle, cidade-sede da Boeing, onde se reuniram diversos executivos de todo o mundo ligados à indústria do transporte aéreo. Visando chamar a atenção desses executivos para o novo avião da Boeing, Bill Allen, então presidente da empresa, em 7 de agosto ordenou o voo do 367-80 sobre o lago Washington, onde haveria uma corrida de lanchas, evento que seria acompanhado por diversos membros do encontro de executivos. O que ele não esperava é que seu piloto de provas, Alvin “Tex” Johnston realizaria dois tonneaux (manobra em que o aparelho efetua uma rolagem completa em torno do seu eixo longitudinal) com o 367-80 em cima do evento! Questionado no dia seguinte por Bill Allen sobre o que tinha feito, “Tex” Johnston calmamente respondeu: “Estou vendendo o avião!”.
Veja o vídeo do tonneau do 367-80:
Por ser uma aeronave-conceito, alguns detalhes tinham de ser mudados e o principal deles era o diâmetro da fuselagem. Com medidas baseadas no modelo 337 Stratocruiser, o diâmetro da fuselagem de 3,35 m do 367-80 foi aumentado para 3,66 m para o modelo KC-135 militar e era suficientemente grande para possibilitar a acomodação de cinco passageiros sentados lado a lado. Todavia, o então presidente da American Airlines, valendo-se do fato que a Douglas estava concebendo seu jato com 3,73 m de diâmetro de fuselagem, comunicou à Boeing que não adquiriria o 707 se este não tivesse diâmetro maior que o DC-8. Dessa maneira, a empresa alargou ainda mais o 707 para 3,76 m, permitindo o arranjo de fileiras de seis passageiros lado a lado.
Em 20 de dezembro de 1957 o Boeing 707-120 voou pela primeira vez já na forma definitiva tal qual nós o conhecemos (lembrando que o 367-80 permaneceu como aeronave-conceito), tendo sido certificada em setembro de 1958. Realizaria seu primeiro voo comercial em 17 de outubro subsequente, nas cores da Pan American World Airways (a primeira e colocar pedidos, em 1955, de 20 unidades do 707 e 25 de…DC-8!), realizando um voo de Nova York a Paris.
Equipado com turbojatos Pratt & Whitney JT3-C, esses motores dispunham de injeção de água (1.200 litros, aproximadamente!) na decolagem, com o objetivo de resfriar o ar na entrada dos compressores, aumento a massa de ar admitida.
O sucesso foi imediato: os pedidos foram chegando com a Boeing, por sua vez, aprimorando o 707 de acordo com as solicitações de seus clientes. A partir da série 120, outras variantes do 707 surgiram: o modelo conhecido por 138, uma variante encomendada pela australiana Quantas, desejosa de uma aeronave menor e de maior autonomia, imortalizada pelo ator John Travolta que o empregou como aeronave particular; o modelo 220, outra versão encurtada do modelo 120 fabricado exclusivamente para a americana Braniff International, equipado com motores mais potentes Pratt & Whitney JT4A de 15.800 lbf de empuxo (ante as 13.500 lbf do modelo 120), voltada para o atendimento das rotas de América Latina e Caribe, que demandavam maior reserva de empuxo de decolagem em condições de alta temperatura; o modelo 020 (que ficou conhecido por Boeing 720) que nada mais era que o 707 com modificações na asa para melhor desempenho em altitudes menores, típicas de rotas domésticas; e por fim as versões 320 e 420, alongadas, de asas de maior área e maior autonomia de voo, voltada para as rotas oceânicas.
As versões 320 e 420 eram praticamente idênticas, diferindo pelo uso de motores Rolls-Royce Conway no modelo 420, erroneamente chamado de turbofans: na realidade, o Conway era um turbojato com uma derivação de ar no compressor, gerando um fluxo de ar para a parte externa ao motor, aumentando seu rendimento.
A Pratt & Whitney não ficou para trás e logo modificou o JT3C com a eliminação de 2 estágios iniciais dos compressores e a colocação de dois fans para aumento da massa de ar deslocada.
A partir dos anos 1970 uma intensa movimentação em torno do nível de ruído das aeronaves a jato, somada à questão do aumento vertiginoso do custo do querosene, levou as empresas a substituir o velho jato por aeronaves mais novas e eficientes. Rotas que outrora requeriam o uso de quadrirreatores por questões de segurança passaram a ser atendidas pelos trijatos 727 e num momento posterior, pelos birreatores Airbus A-300/A-310 e Boeing 757/767, sempre com altíssimos níveis de confiabilidade de seus motores e sistemas. O nível de ruído também ajudou a empurrar os 707 para aeroportos ainda mais periféricos e mesmo os kits de redução de ruído (os famosos hush-kits) não eram suficientes para o enquadramento desses motores nas normas de emissões de ruído.
Nesta época, chegou-se a cogitar a remotorização dos 707 com motores GE/Snecma CFM-56, iguais aos do Boeing 737 série 300, todavia o alto custo das modificações acabou não permitindo que, no uso civil, essas modificações fossem levadas adiante, uma vez que para uso de passageiros o 707 era de tamanho semelhante ao Boeing 727-200 (este bem mais econômico), e para carga, pequeno para justificar sua remotorização.
No Brasil
A Varig foi a empresa pioneira no modelo e em 1959 optou pelo modelo de maior rendimento e economia de combustível no ato de sua encomenda: solicitou a Boeing a fabricação de duas aeronaves do modelo 420 com motores Rolls-Royce, que assim que chegaram em 1960 receberam os prefixos PP-VJA e PP-VJB. O PP-VJB teve carreira curta, acidentando-se em 1962 em Lima, no Peru e substituído pelo PP-VJJ, um 707-420, por sinal o último desse modelo produzido.
A partir de 1965 a Varig começou a receber novos 707, mas agora do modelo 320 C (modelo 320 com melhorias e refinamentos aerodinâmicos), também equipados com piso reforçado e porta lateral de carga, e no final da década de 1960 mais aeronaves foram agregadas à frota, mas desta vez, adquiridas de segunda mão.
Com a chegada dos McDonnell Douglas DC-10 nos anos 1970, os 707 foram sendo deslocados para rotas de passageiros menores de passageiros e empregados no transporte de carga até 1986, quando as últimas quatro aeronaves foram vendidas à Força Aérea Brasileira (FAB). que as mantiveram em operação até 2013.
A Transbrasil, visando na década de 1980 expandir sua oferta de assentos. também voou o 707 configurado para passageiros, todos adquiridos de segunda mão (alguns da própria Varig). Entretanto a operação foi desastrosa: problemáticos e gastadores, as aeronaves da Transbrasil eram bem malcuidadas internamente e isso foi danoso para a imagem da empresa.
O acidente com o cargueiro da empresa na cabeceira da pista do aeroporto de Guarulhos em 1989, ainda que comprovada a falha humana (esquecimento dos air brakes no dorso das asas abertos), selou o fim das operações em voos regulares no Brasil, que só voltaria, em pequenos números, com pequenas companhias aéreas cargueiras, geralmente voando entre Manaus e Campinas.
No mundo, atualmente restam apenas 40 Boeings 707 em operação, todos nas mãos de operadores militares. A aeronave de John Travolta foi a última civil a sair de operação. O ator, em 2017, doou sua aeronave a um museu da Austrália.
Entre 1957 e 1979 foram produzidas 865 unidades, excluindo os 720.
Os Boeings da FAB
Em 1986 a Força Aérea Brasileira adquiriu quatro Boeings 707 pertencentes à Varig para serem incorporado à sua frota de transporte e reabastecimento aéreo e uma delas servir de aeronave presidencial.
Matriculadas com os prefixos 2401 a 2404 (o 2401 era a aeronave presidencial), os 707 serviram à Força Aérea Brasileira por cerca de 27 anos até terem sua desativação declarada em 2013.
Ainda na época de sua aquisição, foram muito criticadas por terem sido compradas já “velhas” da Varig, além de serem extremamente limitadas no quesito operação: como aeronave presidencial operando em aeroportos civis em situação de paz, os 707 não podiam voar livremente na América do Norte e Europa, uma vez que as aeronaves da FAB não eram dotadas de hush-kits. Acrescido a isso, inúmeras panes tanto em voo quanto em terra, na época do governo Fernando Henrique Cardoso, renderam-lhe o infame apelido de “Sucatão”, creditado ao chanceler Luiz Felipe Lampreia.
Embora os Boeings 707 da FAB fossem aeronaves “voadas” a serviço da Força Aérea, teriam uma longa vida, uma vez que aeronaves militares voam menos que em uso comercial. Todavia, a falta de peças de 707 no mercado internacional começou a dificultar a conservação dessas aeronaves e encarecer sua operação. A FAB chegou a adquirir três aeronaves no mercado civil para servir de banco de peças, mas ainda assim as dificuldades permaneceram, e os Boeings 707 2401, 2402 e 2403 foram desativados no segundo semestre de 2013. Colocados à venda, não houve interessados, e por isso foram desmanchados na Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro.
O 2404, durante uma operação militar brasileira no Haiti no primeiro semestre de 2013, sofreu uma pane de motor e, ao retornar à base, no momento do pouso o trem de pouso do nariz quebrou, danificando ainda mais a aeronave. Não houve feridos, mas a aeronave ficou com sua recuperação economicamente inviável. Talvez tenha sido essa a razão que determinou a desativação dos Boeings 707 no país, encerrando a vida dessa aeronave conosco
Nenhum comentário:
Postar um comentário