Continuando a matéria sobre os jatos comerciais que inauguraram a era do jato, falarei do Douglas DC-8, aeronave que também está comemorando 60 anos de seu primeiro voo.
A então Douglas Aircraft Company, desde o lançamento do bimotor DC-3 em 1936, assumiu a dianteira na fabricação de aeronaves comerciais. O DC-4, quadrimotor, foi lançado em 1942, mas como os Estados Unidos haviam recém (2 de dezembro de 1941) declarado guerra à Alemanha, à Itália e ao Japão, o DC-4 “vestiu farda” como C-54 Skymaster, juntamente com DC-3 cuja versão militar recebeu a designação C-47. Terminado o conflito, o C-47 e o C-54 passaram a ser excedentes de guerra e por isso muitos acabaram vendidos a preços irrisórios a diversas companhias aéreas de todo mundo, o que fomentou a aviação comercial num nível inimaginável.
Com os tempos de paz pela frente, a Douglas prosseguiu com sua evolução e criou o DC-6, o primeiro Douglas de cabine pressurizada, que competia de igual para igual com o Constellation, o que o DC-4 não conseguia. Depois veio o Douglas DC-7, que seria o concorrente direto do Lockheed Super Constellation. Ambos eram dotados dos melindrosos motores Wright R-3350 turbocomposto de 18 cilindros — havia um conjunto de 3 turbinas movimentada pelos gases de escapamento, como nos turbocompressores que conhecemos dos automóveis, só que levava a potência diretamente para o virabrequim por meio de um intrincado acoplamento viscoso, potência essa que se somava à do motor. Eram motores de confiabilidade tão precária que, devido ao grande número de quebras em voo as companhias aéreas mantinham conjuntos de motores completos em suas escalas, para troca imediata.
Assim, na concepção de futuro da Douglas e mesmo da Lockheed, a era do jato seria precedida necessariamente de um período com aviões turbo-hélice, tanto que no Velho Mundo, mais precisamente na Inglaterra, surgiam o Vickers Viscount, o Vanguard e o Bristol Britannia dotados de quatro motores turbo-hélice Napier Eland para rotas internacionais.
Todavia, Donald Douglas teve de mudar rapidamente de opinião quando a Força Aérea dos Estados Unidos (USAF) manifestou seus planos para a aquisição de novas aeronaves para reabastecimento aéreo. Naquele tempo, os então Boeing KC-97 derivados do 337 Stratocruiser já se mostravam claramente limitados para a operação de reabastecimento aéreo dos bombardeiros a jato B-47, obrigando-os a descer de sua altitude de cruzeiro e reduzindo sua velocidade para números críticos, enquanto os KCs tinham que voar a máxima velocidade possível. Douglas acreditava que a USAF fosse dividir as compras dos novos reabastecedores, com o Boeing 367-80 já uma realidade em 1954, a USAF optou pela aeronave da Boeing, autorizando a fabricação de 29 aeronaves de um pedido de 250 aviões.
Apesar dos protestos de Donald Douglas junto ao governo, o projeto do novo jato da empresa já se encontrava bem adiantado, com estudos iniciados em 1952. Assim ele optou por focar no mercado comercial, ouvindo as companhias aéreas sobre o que elas esperavam de um jato comercial. E por conta disso,a Douglas acabou por sepultar o projeto do DC-7D, que nada mais era que o modelo C dotado de motores turbo-hélice Napier Eland.
A partir daí é que surge o DC-8, o “The Magnificent 8” (um trocadilho fazendo alusão ao filme “The Magnificent 7” — por sinal, com a música-tema que depois ficou conhecida como “a música do Marlboro”), considerado por alguns o último membro de uma dinastia iniciada por Donald Douglas e seus engenheiros com o DC-1 de 1933.
O nascimento do DC-8, inaugurado com a encomenda de cinco aeronaves pela National Airlines, seguido por outras 25 da Pan American World Airways, ganhou um significativo reforço de 30 aeronaves para a United Airlines, com a concordância da Douglas em alargar a fuselagem para 3,73 m de diâmetro (o plano original era 3,35 m) para acomodar 6 passageiros sentados lado a lado, num total máximo de 177 passageiros.
O primeiro voo do DC-8 ocorreu em 30 de maio de 1958 e sua utilização comercial, em setembro de 1959. Os primeiros Douglas DC-8 saíam com quatro motores Pratt & Whitney JT3C de 13.500 lbf de empuxo, idênticos ao do Boeing 707. Uma das peculiaridades da primeira série de DC-8 foi o emprego de “speed brakes”para redução da velocidade em voo e descidas rápidas, equipamento este rapidamente abolido nas versões subsequentes e, tendo em vista que era proibida a abertura desses spoilers das asas em voo, o procedimento adotado (e recomendado pela Douglas!) era o emprego do reverso dos motores 2 e 3 (internos) para “frear” o aparelho!
Como todos os novos projetos, o DC-8 não era isento de problemas: seu grande “calcanhar de Aquiiles” foi, sem dúvida, as asas. Com 30º de enflechamento, seu perfil de asa supercrítico (um tipo de aerofólio), inovador para à época, acabou gerando, na prática, mais arrasto que o desejado, diminuindo a sua velocidade de cruzeiro. Se levarmos em conta que nessa época havia uma espécie de “corrida” por velocidade entre os fabricantes, isso representou um grande problema para a Douglas, que teve de ir entregando as aeronaves e, em paralelo, ir aprimorando as asas, projeto esse que chegou a bom termo na versão 62 e 63, ambas de longo alcance.
Assim como o 707, os modelos subsequentes (séries 20 e 30) do DC-8 empregaram os motores JT4C, de maior empuxo e houve a chamada série 40 que recebeu motores Rolls-Royce Conway. Inclusive, foi um série 40 que voou, pela primeira vez, a velocidades superiores à do som, sendo considerado o primeiro avião de passageiros a obter tal marca, anos antes do Tupolev Tu-144 e do Concorde.
A série 50 do DC-8, por sua vez, inaugurou aquilo que ficou conhecido como os DC-8 “modernos”, já em sua forma final, dotado dos motores turbofan Pratt & Whitney JT3D. Com capacidade para até 189 passageiros, este modelo era o concorrente direto do 707 série 320. Todavia, nesta época, a Boeing já estava com amplo sucesso comercial enquanto a Douglas assistia ao declínio de vendas do DC-8. Alguns DC-8 das séries iniciais foram convertidos para a versão 50.
O programa estava em risco de ser encerrado quando a Douglas, em uma última cartada, criou a série 60: o modelo 61 era o modelo 50 alongado em 11,2 m e capacidade aumentada para até 259 passageiros, sacrificando, no entanto, a autonomia da aeronave. Voou pela primeira vez em 1966 e entrou em serviço no ano seguinte, na United Airlines. O modelo 62, por sua vez, consistiu num incremento de 2 m na fuselagem do modelo 50 e um novo par de asas, visando aumentar seu alcance operacional. O modelo 63, surgido em 1968 combinava a fuselagem longa do modelo 61 com as asas do modelo 62, o que deu um ganho de autonomia a aeronave. Os motores da série 60 eram os mesmos Pratt & Whitney JT3D turbofans da série 50 (e idênticos ao dos 707) com 18.000 lbf de empuxo embora esteticamente aparentassem ser outros: O DC-8 empregou o conceito “full ducted fan“, com todo o motor carenado, desde o fan até a saida da turbina propriamente dita.
Entretanto, já nessa época iniciava-se a campanha visando a redução do nível de ruído dos motores a jato em operação: novas aeronaves de fuselagem larga (wide body) e motores turbofans mais econômicos e eficientes chegavam ao mercado e os ciclos de vida do DC-8 e do Boeing 707 começavam a chegar ao fim. Problemas na linha de produção do DC-8, desde 1965, acabaram levando a fusão com a McDonnell em 1968, e em 1971 a empresa anunciou que o último DC-8, uma aeronave modelo 63 e a 556ª produzida, estaria sendo entregue em meados de 1972 para a Scandinavian Airlines System (SAS), a companhia multinacional da Suécia, Dinamarca e Noruega.
Novos contornos
A saga do DC-8 ainda apresentou novos contornos. Logo em 1975, Jackson McGowan, um ex-presidente da Douglas, encampou um amplo programa de remotorização do DC-8: naquela época, a americana General Electric, em parceria com a francesa Snecma, desenvolveu o turbofan CFM-56 e o projeto “Super 70” de McGowan consistia na remotorização dos DC-8 61/62/63 com esses motores, criando os famosos 71/72/73. Os motores CFM deram nova vida ao modelo: Produzindo 22.000 lbf de empuxo cada uma, as turbinas CFM eram muito mais econômicas e sileciosoas e graças a isso, durante alguns anos, o DC-8 -70 foi considerado foi o quadrirreator de passageiros de operação mais silenciosa.
O sucesso do programa Super 70, combinado com uma aeronave muito bem projetada, fizeram com que o DC-8, apesar de produzido em números inferiores aos 1010 Boeings 707 produzidos, tivesse uma sobrevida operacional superior, com diversas aeronaves ainda em operação no início da década de 2010.
Uma particularidade que poucos conhecem é que o projeto do turbofan GE/Snecma CFM-56 passou anos em busca de compradores e, no momento que esteve em vias de ser encerrado, nos idos de 1979, faltando apenas duas semanas para a dissolução da joint venture, quando a Delta Airliners, a United Airliners e a cargueira Flying Tigers aderiram ao programa “Super 70”, salvando, por consequência, o motor CFM-56 da extinção. O resto é história e o CFM talvez seja o turbofan mais produzido na história da aviação!
No Brasil
A escolha do DC-8 para voos internacionais foi feita pela Panair do Brasil em 1958, com a encomenda de duas unidades do modelo 33, aeronaves que chegaram ao país em março de 1961 e receberam as matrículas PP-PDS e PP-PDT, logo assumiram as rotas europeias e do norte da África.
O PP-PDT foi protagonista do primeiro acidente da era do jato de uma companhia aérea brasileira: ao tentar decolar do Aeroporto do Galeão (atual Aeroporto Internacional Tom Jobim), a aeronave não conseguiu alçar voo, acabou varando a pista, cruzou a avenida que contorna o aeroporto e foi parar no mar, felizmente raso naquele ponto; 14 pessoas pessoas perderam a vida. A causa foi falha humana, uma vez que os estabilizadores estavam configurados para uma posição incorreta para a decolagem e o piloto não conseguiu fazer a rotação. A tentativa de frear o aparelho foi em vão, agravada com a tentativa de uso dos reversos dos motores: devido a quebra do trem de pouso, os reversos acabaram por se quebrar também (veja sua ilustração na imagem do DC-8 da CP-Air) e a desaceleração do jato virou aceleração.
Entretanto, no mesmo ano chegaram mais duas aeronaves (desta vez de segunda mão) vindas diretamente da Pan American: O PP-PEA e o PP-PEF, uma delas própria e a outra, arrendada da companhia americana.
Com a suspensão dos voos da Panair do Brasil e a sua posterior decretação de falência, dois dos três Douglas DC-8 da Panair (PP-PDS e PP-PEA) foram arrendados à Varig, passando a fazer parte do espólio da Panair e posteriormente com a propriedade repassada para a União. O terceiro foi devolvido a Pan American.
As aeronaves permaneceram nos anos subsequentes em operação com a Varig. Em 1967 o PP-PEA foi perdido em um acidente nos procedimentos de pouso em Monróvia, Libéria restando apenas o PP-PDS que permaneceu em operação até 1975 quando foi encostado em Porto Alegre e vendido em 1977.
A história do DC-8 no país teria continuidade em 1990: a Vasp, já nas mãos de Wagner Canhedo, arrendou quatro aeronaves do modelo 71, remotorizadas, para o transporte de carga. Essas aeronaves operaram até meados da década de 1990, sendo posteriormente devolvidas ao arrendador.
Nesta mesma época, com o boom economico com o Plano Real, ocorreram muitos fretamentos de aviões para destinos turísticos no Caribe e com isso, uma série de companhias não regulares de passageiros surgiram no mercado. A Air-Vias, uma empresa dessa época chegou a empregar um DC-8-62 para rotas caribenhas, entretanto a aeronave da empresa ja era antiga e problemática, e em virtude das constantes panes, sua vida no Brasil foi curta.
Posteriormente outras companhias cargueiras não regulares arrendaram Douglas DC-8, todavia quase todos acabaram encostados nos pátios de aeroportos, abandonados com a falência dessas companhias.
O DC-8, na opinião de muitos, foi a ultima grande aeronave projetada e construída para ser robusta. Considerada como sendo “over engineered” (termo que significa algo como projetado para níveis acima do esperado, robusta), o DC-8 entrou para a história como sendo uma aeronave bem projetada e construída, de bom desempenho e capacidade e relativamente dócil de pilotagem. Há quem diga que pilotar um DC-8 assemelha-se a dirigir um Cadillac e o 707, um caminhão.
Atualmente restam, de acordo com o censo de 2016 da conceituada revista Flight International, restam 2 Douglas DC-8 em operação no mundo.
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