O nome Dassault se liga a uma longa e bem-sucedida série de aviões de combate produzidos depois da Segunda Guerra Mundial. Está associado à idéia de um espírito empreendedor, a uma vontade de buscar e desenvolver novas concepções técnicas, bem como à capacidade de testá-las de maneira rápida e relativamente econômica, construindo aviões experimentais que, se desejado podem servir de base para uma produção de caças de série.
Os Mirage III e 5 são provavelmente os produtos mais famosos da Avions Marcel Dassault. Trata-se de caças supersônicos — os de maior sucesso comercial na Europa —, com cerca de 400 fabricados para 22 forças aéreas de todo o mundo e em produção ainda nos anos 80.
Atraída pela combinação de baixo arrasto induzido e grande volume interno (para acondicionar tanto o combustível como o trem de aterragem), a companhia francesa desenvolveu a configuração em delta sem estabilizador; primeiro veio o interceptador, depois a versão de ataque ao solo. A série baseou-se no MD.550 Mirage 1, dotado de duas turbinas Rolls-Royce Viper, que voou pela primeira vez em 26 de junho de 1955 e conduziu ao projeto Mirage II, com dois propulsores Gabizo, posteriormente cancelado.
Reprojetado em torno de uma única turbina Atar, tornou-se Mirage III; seu primeiro protótipo decolou em 18 de novembro, de 1956. Incorporando alguns refinamentos aerodinâmicos, uma Atar mais potente e motor-foguete auxiliar para possibilitar interceptação a grande altitude, o primeiro Mirage IIIC de série voou em 9 de outubro de 1960. Entrou em serviço nas esquadrilhas da Armée de l’Air (a Força Aérea francesa) pouco tempo depois.
Embora a asa em delta fosse uma boa configuração na defesa aérea (com subidas e acelerações rápidas para interceptar um bombardeiro inimigo voando a grande altitude), apresentou muitas desvantagens operacionais. Nas curvas apertadas exigidas pelos dogfights, gerava demasiado arrasto, devido ao baixo alongamento (relação entre a envergadura da asa e a área alar) e à severa carga para baixo nos elevons. Essa última característica também afetou negativamente o desempenho de pista, pois as velocidades de pouso resultaram um tanto mais elevadas que o desejado.
A asa em delta tende a provocar o Dutch roll (oscilação pendular sob ângulos de ataque acentuados, como nas aproximações finais, por exemplo). Há outro problema no uso do Mirage III para ataque ao solo: sua carga alar relativamente baixa produz acentuada suscetibilidade a rajadas de vento, impondo ao piloto um vôo turbulento em condições de alta velocidade e pouca altitude.
Alguns desses problemas poderiam ser atenuados com a inclusão de planos canards (pequenas asas na fuselagem dianteira) no nariz, para aliviar os elevons (substitui-se à carga traseira para baixo por uma força para cima, na frente), desenvolvidos pela Dassault e pela Israel Aircraft Industries. Entretanto, na série seguinte do Mirage, os projetistas e engenheiros da fábrica adotariam outro enfoque.
Ar-ar mais ataque ao solo
O principal objetivo ao se iniciar o projeto da nova série (trabalho que começou em 1962) era fazer um avião de combate polivalente. O aparelho deveria ter desempenho igualmente bom como interceptador a Mach 2,2 e como avião de ataque ao solo, com um raio de ação em lo-lo (baixa-baixa altitudes) de cerca de 560 km, além de condições de operar em pistas não pavimentadas. Para a defesa aérea, precisaria atingir pelo menos Mach 2,2 a 15.250 m, e capacidade de alcançar Mach 2,5 por curtos períodos. Para missões de ataque ao solo seria armado com dois canhões de 30 mm e um artefato nuclear; teria velocidade de cruzeiro de Mach 0,7 e, por uma distância de 150 km, de Mach 0,9. A sensibilidade a rajadas deveria ser muito inferior à do Mirage III.
Com esse projeto, a Dassault deu início a um programa de construção de protótipos e vôos experimentais provavelmente sem precedente na história da aviação. Investigou uma ampla faixa de conceitos diferentes, que prometiam combinar elevada velocidade supersônica com diversos graus de desempenho em pistas curtas.
Delta, VTOL, enflechamento ou geometria variável?
Em junho de 1964, voou o Mirage IIIT (também conhecido como Mirage T), que aderia à fórmula da asa delta sem estabilizador, impulsionado por um turbofan SNECMA TF-106, de 8.165 kg, baseado no Pratt & Whitney JTF10. Dentro do programa de estudos, esse modelo fornecia dados pelos quais os novos protótipos (mais avançados) podiam ser comparados.
Das várias alternativas, a que oferecia o melhor desempenho em pistas curtas era o Mirage IIIV VTOL (ou Mirage V), de decolagem vertical, cujo primeiro protótipo voou em fevereiro de 1965. Estava equipado com uma turbina SNECMA TF-106 para propulsão à frente e uma bateria de oito impulsores Rolls-Royce RB.162 de sustentação, para as manobras de decolagem e pouso. Um segundo protótipo (Mirage IIIV-02) voou em junho de 1966, com uma turbina Pratt & Whitney TF-306, de 10.433 kg, em lugar da TF-106.
Usou-se uma asa enflechada convencional na série F, opção que a Dassault não considerou prática na época do projeto do Mirage III, pela dificuldade de se construírem asas realmente delgadas e de corda pequena. Entretanto, dez anos de desenvolvimento em técnicas de fabricação já tornavam a asa enflechada uma perspectiva concreta, e o Mirage F.2 com turbina TF-306 acabou voando em junho de 1966. O protótipo em escala reduzida, equipado com uma Atar K, de 7.255 kg, voou no dia 27 de dezembro do mesmo ano. E, finalmente, como quarta opção, o Mirage G com turbina TF-306 e asa de enflechamento variável foi testado em outubro de 1967.
O dispendioso VTOL
A empresa contava, portanto, com quatro séries de aviões bem diferentes para comparar. Um exemplar de cada uma das três novas séries tinha o turbofan TF-306, e todos (assim como o IIIT, em tamanho maior) foram projetados para satisfazer as exigências originalmente descritas. O efeito dos diferentes projetos sobre o tamanho do aparelho — e sobre os custos — era bem nítido, e o VTOL acabou se distanciando dos aparelhos convencionais por uma larga margem: com uma carga militar de 1.500 kg, o peso de decolagem era de 12.900 kg para o Mirage IIIT aumentado, 14.000 kg para o F.2, 14.100 kg para o G, e 17.500 kg para o IIIV-02.
Além de resultar num avião mais pesado e excessivamente dispendioso, o VTOL também se mostrou um mau interceptador em termos de desempenho. Levava 10 minutos e 42 segundos para alcançar Mach 2,2 a 15.250 m, um tempo excessivo, em comparação aos 4 minutos e 48 segundos do F.2, aos 4 minutos e 30 segundos do IIIT aumentado, e aos 3 minutos e 36 segundos do Mirage G. A Dassault concluiu que as desvantagens em custo e desempenho do VTOL eram inaceitáveis na época, embora outros estudos da companhia indicassem que o peso poderia eventualmente ser reduzido pelo desenvolvimento de turbinas de sustentação mais leves e pelo uso de uma melhor disposição desses equipamentos.
Restava escolher entre a série F de asa enflechada convencional e a G, de geometria variável. O fato de a Dassault não ter levado em consideração o arranjo canard da categoria Saab Viggen talvez se explique pela falta de experiência nessa área e pelas pequenas vantagens oferecidas. O Mirage G era de longe a melhor das alternativas estudadas, em termos de sensibilidade às rajadas, para o conforto do piloto nas incursões de longo alcance e alta velocidade e em qualquer missão de interceptação que exigisse manobras de espera antes do combate. Também tinha o melhor desempenho de pista, depois do Mirage IIIV.
A série F, de asa fixa, porém, mostrava considerável vantagem sobre a T, na sensibilidade às rajadas de vento, ao passo que a distância de decolagem foi reduzida de 750 para 700 m, e a velocidade de aproximação baixou de 330 para 277 km/h. O Mirage F também era mais simples e barato do que a série G, de geometria variável, apesar da igualdade no peso de decolagem.
Considerações adiadas
Embora as deliberações da Força Aérea francesa sobre o assunto nunca tenham vindo a público, parece que ela decidiu continuar os estudos do avião de geometria variável para missões de ataque de longo alcance. Isso, possivelmente, já com vistas à reposição dos Mirage IVA, enquanto aceitava o F.1 (o mais leve dos dois de asa fixa da série F) como substituição ao interceptador de duas turbinas para qualquer tempo, SNCAO Vautour IIN. Como primeiro passo, com o objetivo de aumentar os conhecimentos sobre o protótipo F.1 financiado pela companhia, a Força Aérea encomendou três de pré-produção, que voaram, respectiva-mente, nos dias 20 de março e 18 de setembro de 1969 e 17 de junho de 1970.
Comparado com o Mirage III anterior, o F.1 apresenta diversos aperfeiçoamentos, além do superior desempenho de pista e da melhor resposta a rajadas. Apesar de sua asa menor e delgada, o Mirage F.1 carregava aproximadamente 40% a mais de combustível interno, totalizando 4.280 litros, devido ao uso de tanques integrais em lugar dos antigos, de célula; o tempo de patrulha triplicou. Graças ao maior alongamento, o F.1 também atinge uma razão de curva 80% melhor. Seu radar Cyrano IV proporcionava um alcance cerca de 40% maior que o Mk II do Mirage III, e captava alvos móveis em interceptações “olhando para baixo”. A velocidade máxima também aumentou, subindo de Mach 2 para 2,2.
Talvez a característica mais surpreendente na nova geração foi que, ao invés de aproveitar a oportunidade para introduzir um turbofan mais econômico, a Dassault conservou um turbojato Atar, cuja origem remonta ao trabalho de uma equipe alemã transferida para a França no fim da Segunda Guerra Mundial. O Mirage F.1 possuía uma Atar 9K-50 com potência aumentada (7.200 kg de empuxo), derivada do turbofan usado no caça-bombardeiro Mirage IVA.
A razão do cancelamento do programa de fabricação sob licença dos motores Pratt & Whitney TF-306 era bem simples: seu uso dava aos Estados Unidos poder de veto às exportações dos aviões franceses, vendas essas fundamentais para baixar o custo do Mirage F.1 para a Força Aérea francesa, em decorrência da quantidade produzida. A decisão de manter a Atar penalizou o raio de ação, a autonomia e o desempenho na decolagem, mas, em compensação, também reduziu os custos e a necessidade de treinamento especial para as equipes de terra.
Início de produção
A primeira encomenda (trinta aviões) para a Força Aérea francesa ocorreu em 18 de setembro de 1969. Oficialmente, a aviação adquiria caças Mirage F.1, embora no sistema de designações da Dassault, o avião básico “doméstico” fosse o F.1C. Uma segunda encomenda, especificando um lote de 55 aparelhos, foi assinada em 1971. O primeiro F.1C de série deixou o hangar no dia 15 de fevereiro de 1973, sendo entregue em 14 de maio daquele ano.
O primeiro e o quinto avião de série fizeram vôos de teste no Centro d’Essais en Vol (Centro de Vôos Experimentais), em Istres; os três aparelhos intermediários testaram armas e equipamentos no Centre d’Experimentations Aériennes Militaires (Centro de Experiências Aéreas Militares), em Mont-de-Marsan. Os sete seguintes foram entregues, na Base Aérea 112 (em Reims, na Champagne), ao ECTT 30 (Escadre de Chas-se Tous-Temps, um regimento de caças para qualquer tempo), para iniciar a adaptação dos pilotos, que então operavam o Vautour IIN.
A primeira esquadrilha reequipada com o novo aparelho foi uma das mais famosas da Força Aérea francesa, a ECTT 2/30 (2ª Esquadrilha do 30° Regimento) “Normandie-Niernen”. Esse grupo se formou na União Soviética, em 1942, em plena Segun-da Guerra Mundial; os pilotos franceses, voluntários, comandavam caças Yakovlev Yak, de fabricação local. Em seguida, a ECTT 3/30 “Lorraine” recebeu quinze F.1C. O segundo regimento a receber o caça foi o EC 5, na Base Aé-rea 115, em Orange, com as esquadrilhas EC 1/5 “Vendée” e EC 2/5 “Ile de France”. Entre 1978 e 1979, cerca de 25 desses aviões retornaram ao fabricante (já Dassault-Breguet) para receber sondas de reabastecimento em voo, o que lhes permitiria recorrer aos aviões-tanques C-135F, em especial nos longos deslocamentos até a África. No começo de 1980, quatro Mirage F. 1C voaram até Djibouti (golfo de Aden, na entrada do mar Verme-lho) e voltaram, numa demonstração de sua capacidade para socorrer prontamente as nações africanas. Mirage F.1C-200 foi a designação do fabricante para esse aparelho.
Mísseis franceses
Uma terceira esquadrilha daquele regimento, a EC 3/5 “Comtat Venaissin”, formou-se com o Mirage F.1B biplace, atuando como unidade de conversão operacional para o F.1. O terceiro e último regimento convertido foi o EC 12, da Base Aérea 103, em Cambrai, com as esquadrilhas EC 1/12 “Cambresis” e EC 2/12 “Cornouaille”. As encomendas francesas para o Mirage F.1 totalizaram 246 aviões no começo de 1982, excluídos os aparelhos de pré-produção.
O F.1C foi otimizado a partir de requisitos da Força Aérea. Seu papel principal era a interceptação a qualquer altitude e condição de tempo, ficando o ataque visual ao solo como função secundária. Desde 1978, ele é equipado com um ou dois mísseis ar-ar Matra Super 530, de orientação por radar semiativo, que fornecem total capacidade de ataque e cobertura rápida. até 9.000 m. O Mirage F.1C podia levar dois mísseis Matra 550 Magic com sistema de guiagem por orientação infra-vermelha, para dogfight, nas pontas das asas; essas armas entraram em serviço em 1976. Outros aperfeiçoamentos incluíram flapes de manobra e uma antena receptora de radar de alerta no topo da deriva.
Ao primeiro modelo em serviço, seguiu-se o F.1A, com equipamento simplificado, desenvolvido para atender às necessidades sul-africanas de um avião de ataque de alta velocidade que também pudesse ser usado em missões de superioridade aérea. Nessa versão, o radar Cyrano IV foi substituído pelo Aida 2, que não permitia o emprego do míssil Matra Super 530. Outros equipamentos incluíam navegação Doppler, telêmetro a laser Thomson-CSF e uma unidade inercial SFIM. O primeiro F. IA foi entregue em 1975.
O terceiro modelo monoplace foi o Mirage F.1E, designação originalmente usada para uma variante com o turbofan SNECMA M53, de 8.500 kg, depois instalado no Mirage 2000. O primeiro desses aviões voou em 22 de dezembro de 1974 e concorreu na “venda do século” com os caças Saab Viggen, General Dynamics YF-16 e Northrop YF-17; venceu o YF-16 (aceito pela Bélgica, Dinamarca, Holanda e Noruega). A designação F.1E passou para uma versão polivalente, com turbina Atar e aviônicos aperfeiçoados. O equipamento incluía uma plataforma inercial SAGEM-Kearfott, computador digital EMD/SAGEM, modificações no radar Cyrano IV para fornecer os relevos do terreno, mira ar-superfície e uma melhor detecção de aviões em baixa altitude. As exportações do F.1E começaram no outono de 1976.
Versão biplace
As três variantes diferem apenas nos equipamentos; a única alteração estrutural no decurso do desenvolvimento do Mirage F.1 foi o F.1B biplace, que voou em 26 de maio de 1976. Destinado basicamente ao treinamento de pilotos, mas com plena capacidade operacional (em vôos solo, comandava-se do cockpit dianteiro), o F.1B se destaca de seus predecessores pelo alongamento de 30 cm na fuselagem frontal, aumento de 200 kg no peso vazio e redução na quantidade interna de combustível. As exportações do modelo tiveram início no final de 1976, mas ele também foi usado pela Força Aérea francesa, que manteve um em cada regimento.
A mais recente variante do Mirage F.1, o F.1CR, foi uma versão de reconhecimento e estava sendo desenvolvida em 1985 para a Armée de l’Air, com vistas à substituição do Mirage IIIR/RD nas esquadrilhas do regimento ER 33 (Escadre de Reconnaissance 33), na Base Aérea 124, em Estrasburgo. Enquanto o F.1C básico executa missões de fotorreconhecimento com quatro câmaras num casulo externo, o F. 1CR tinha pelo menos duas internas, conservando o radar do nariz. Havia o projeto de desenvolvimento futuro, para a Força Aérea francesa, do Mirage F.1CT, um caça de ataque.
A combinação de bom desempenho e simplicidade operacional granjeou popularidade para o F.1 no mercado de exportação. Incluindo as encomendas francesas, o total, em meados dos anos 80, somou 649 aparelhos, com uma produção em torno de sete aviões por mês.
Versões do Mirage F.1
- F.1A: modelo simplificado, desenvolvido para satisfazer os requisitos de um avião de ataque para a África do Sul; reduzida capacidade para a defesa aérea; sem o radar Cyrano IV e mísseis Matra Super 530: o equipamento inclui radar Aida 2, telêmetro e navegação Doppler.
- F.1B: biplace de treinamento conservando capacidade operacional completa, mas sem canhão: 30 cm mais longo do que o monoplace; peso vazio aumentado em 200 kg: menos combustível interno.
- F.1C: interceptador para qualquer condição de tempo. Destinado à Força Aérea francesa, com capacidade secundária de ataque visual ao solo. F.1C-200: igual ao F.1C, mas com sonda de reabastecimento em võo.
- F.1CR: versão de reconhecimento desenvolvido para a Força Aérea francesa, com duas câmaras internas, conservando o radar Cyrano IV.
- F.1CT: versão de ataque tático proposta para a Força Aérea francesa.
- F.1D: biplace com motor M53; projeto abandonado.
- F.1E: originalmente usado para designar modelos monoplaces com motor M53 com aviônicos aperfeiçoados, inclusive com o radar Cyrano IV.
- F.1R: designação por vezes aplicada à versão de reconhecimento, aparentemente superada pela F.1CR.
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