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quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Quando a FAB trocou algodão por aviões de caça

 Empregados entre 1953 e 1966, os ingleses Gloster Meteor F-8 e TF-7 foram os primeiros caças a jato operados pela FAB. Os 70 aviões, no entanto, foram adquiridos através de uma troca 15 mil toneladas de algodão.

Com os Gripens, o Brasil pagou R$ 5 bilhões por 36 aviões e um amplo pacote de transferência de tecnologia. No caso dos pioneiros jatos britânicos, a situação foi diferente: o pagamento foi com algodão. 

Conheça um pouco mais sobre o Gloster Meteor, o caça que a FAB comprou sem usar dinheiro. 

Origens

Em agosto de 1939, a Alemanha quebrou uma importante barreira tecnológica ao realizar o primeiro voo de uma aeronave a jato, com o Heinkel He-178. Pouco mais de um ano depois, os alemães foram os primeiros a voar o primeiro avião de caça a jato, o He-280, também da Heinkel. 

Foi só em 1941, já durante a Segunda Guerra Mundial, que os aliados fizeram o primeiro voo de uma aeronave movida a jato, com o Gloster E.28/39. Também chamado de Gloster Pioneer, o pequeno monomotor foi amplamente testado e experimentado, ao mesmo tempo em que o combate corria solto na Europa. 

Ao contrário dos modelos alemães que usavam turbojato do tipo axial, o modelo britânico usavam um motor tipo centrífuga, que incluía 10 câmaras de combustão de fluxo inverso, montadas ao redor de um motor axial. A Inglaterra apostou neste desenho e seguiu aprimorando e estudando sua aplicação em aeronaves de combate. A partir dos desenvolvimentos, a Gloster apresentou o projeto G.41 em resposta ao requerimento F.9/40 do Ministério do Ar britânico. Surgia então o Meteor, o primeiro caça a jato de sucesso dos Aliados. 

O Meteor chegou muito tarde para fazer qualquer diferença na Segunda Guerra Mundial, sendo usado apenas no final do conflito. Foto: RAF.
O Meteor chegou muito tarde para fazer qualquer diferença na Segunda Guerra Mundial, sendo usado apenas no final do conflito. Foto: RAF.

Apesar do advento e sua performance superior os demais caças em atividade, como o P-51 Mustang e Supermarine Spitfire, o Meteor não foi logo implantado em combate, uma vez que era uma aeronave completamente nova e sua operação era limitada. Além disso, os Aliados temiam que o o jato caísse nas mãos dos alemães.

Assim, em 1944, os Meteor F.1 entraram em serviço com Força Aérea Real (RAF) como vetores de defesa da Inglaterra. Seu primeiro uso em combate foi derrubando as bombas voadoras V-1; em paralelo, a RAF estudava o emprego do avião para aprimorar sua performance. 

Com o modelo mais maduro, os Aliados decidiram finalmente enviar seus novos aviões para a linha de frente. Em fevereiro de 1945, um destacamento do Esquadrão 616 da RAF foi enviado para a Bélgica, mas ficou ali apenas até o final de março. Acompanhando o rápido avanço das tropas aliadas, a unidade foi transferida para a Holanda, onde trocou de base mais duas vezes até a rendição final da Alemanha em maio daquele ano. 

Neste breve período, os Meteor não foram engajados em combate aéreo, participando apenas de missões de ataque ao solo e reconhecimento armado. Muito esperada pelos pilotos de caça britânicos, a peleja do Gloster Meteor contra o Messerschmitt Me-262 nunca aconteceu. 

Brasil

No final do conflito, a Força Aérea Brasileira tinha uma generosa frota de aviões de todos os tipos. Os principais caças eram o P-40 Warhawk e o lendário P-47 Thunderbolt. Este último foi o modelo utilizado na Itália pelos pilotos do 1º Grupo de Aviação de Caça (1º GAvCa), o famoso Senta a Púa. 

O advento do jato no final da Segunda Guerra Mundial mudou completamente a aviação. De uma hora pra outra, aviões de caça a pistão se tornaram obsoletos, atropelados por modelos como o P-80 Shooting Star e F-86 Sabre dos Estados Unidos, o MiG-15 Fagot da União Soviética e o próprio Meteor. Este fato foi notado pelas autoridades brasileiras, que logo iniciaram a busca por um novo vetor. A imensa maioria dos aviões da FAB eram de origem norte-americana, então foi aos EUA que os militares foram primeiro.

Uma comitiva da então jovem FAB esteve no país para entender a operação dos aviões a jato, que envolvia uma cadeia logística diferenciada. Nem mesmo o querosene de aviação, que alimentava os motores a jato, existia no Brasil. A mudança seria enorme. 

Meteor F-8 preservado nas cores do 1º/1º Grupo de Aviação de Caça, o famoso Senta a Púa. Foto: Força Aérea Brasileira.
Meteor F-8 preservado nas cores do 1º/1º Grupo de Aviação de Caça, o famoso Senta a Púa. Foto: Força Aérea Brasileira.

Ao mesmo tempo, os P-47 e principalmente o P-40 já apresentavam sinais de desgaste. No caso do P-40, a perda de uma asa em voo resultou em um acidente fatal no Rio Grande do Sul. Esta ocorrência decretou um cessar completo de operações com o modelo na década de 1950.

Apesar da necessidade de jatos, o Brasil não tinha condições de adquirir os modelos norte-americanos. Além de serem muito caros, a Guerra da Coreia estava em andamento, atrasando as eventuais entregas.  

Algodão por Caças

Sem orçamento para os F-80, F-84 e F-86 dos EUA, o Brasil acabou achando uma solução criativa para adquirir novos caças.

Ainda se recuperando dos estregados da Segunda Guerra e enfrentado outras crises, a necessidade para alguns materiais era alta. Em uma aproximação entre governos, os dois países começaram a negociação que garantiria os primeiros caças a jato da FAB. 

Após longas conversas, em outubro de 1952 o contrato foi assinado. Em troca de 15 mil toneladas de algodão, a Inglaterra entregaria 70 caças Gloster Meteor ao Brasil, sendo dez unidades do modelo de treinamento TF-7, de dois assentos, e 60 da versão de combate F-8, com um assento. 

Em 1953, a FAB entrava na era a jato com o o Gloster Meteor. Setenta caças foram adquiridos por 15 mil toneladas de algodão, trocadas com a Inglaterra. Na imagem, um Meteor TF-7 do 1º Grupo de Caça (Senta a Púa) voa ao lado do Cristo Redentor.
Em 1953, a FAB entrava na era a jato com o o Gloster Meteor. Setenta caças foram adquiridos por 15 mil toneladas de algodão, trocadas com a Inglaterra. Na imagem, um Meteor TF-7 do 1º Grupo de Caça (Senta a Púa) voa ao lado do Cristo Redentor. Via Atomic Samba.

Enquanto o algodão era entregue, os primeiros dez pilotos brasileiros foram à Inglaterra conhecer a nova máquina. Dentre eles estavam quatro veteranos que combateram na Itália, os então majores Rui Moreira Lima, Hélio Langsch Keller, Josino Maia de Assis e Roberto Pessoa Ramos. 

Meteoros Brasileiros

Após o treinamento nas “Terras da Rainha”, os Gloster Meteor da FAB começaram a ser enviados a Brasil, desmontados a bordo de navios mercantes do Lloyd Brasileiro. Os “meteoros” eram desembarcados no Rio de Janeiro e montados na então Fábrica de Aviões do Galeão. Após a montagem, eram entregues ao Grupo de Caça e, mais tarde, ao Esquadrão Pampa da Base Aérea de Canoas (RS).

A chegada dos Meteor chamou enorme atenção do público. Até mesmo o então presidente Getúlio Vargas voou abordo de um TF-7, logo que os caças chegaram em 1953. Alimentados por um par de turbojatos Rolls-Royce Derwent, os F-8 e ultrapassavam os 900 Km/h, facilmente deixando para trás qualquer outro caça brasileiro da época. 

Um Gloster Meteor do Esquadrão Pampa de Canoas, exposto com seus armamentos.
Um Gloster Meteor do Esquadrão Pampa de Canoas, exposto com seus armamentos. Foto: Alipio Jaeger.

O armamento principal eram quatro canhões Hispano-Suiza de 20 mm, montados no nariz dos F-8. Os TF-7 de treinamento não eram armados. Similar aos Meteor F.8 empregados por Israel e Austrália, os F-8 brasileiros tinham reforço estrutural nas asas para carregar bombas der até 500 libras e foguetes HVAR, de 127 mm. Tanques de combustível também poderia ser carregados nas asas e fuselagem para estender o alcance dos caças. 

Embora inicialmente pensados para missões de interceptação de defesa aérea – como demonstrado pelos britânicos aos aviadores brasileiros durante o treinamento –, os F-8 acabaram sendo empregados em atividades de ataque ao solo, uma vez que na época o Brasil carecia de uma rede de radares de alerta antecipado. Isso seria implantado na década de 1970, junto com a chegada dos Dassault Mirage III. 

Um fim prematuro

O emprego dos Meteors nas funções de ataque ao solo também cobraria seu preço. Em 1961, menos de 10 anos após a chegada dos aviões, a Gloster já alertava para a possibilidade de problemas estruturais nos F-8 e TF-7. Após mais alertas, uma correspondência da Hawker Aviation (que absorveu a Gloster) seria o início do fim da carreira dos F-8 e TF-7 da FAB.

Conforme o site História da Força Aérea Brasileira, do professor Rudnei Dias da Cunha, o documento emitia diversas restrições às aeronaves, como cargas de apenas 5G positivos e -3G, mesmo em configuração limpa (sem bombas, tanques o foguetes nas asas). 

O FAB 4460 foi o último Meteor F-8 da FAB. Na imagem, o caça é visto em um rasante na Base Aérea de Santa Cruz.
O FAB 4460 foi o último Meteor F-8 da FAB. Na imagem, o caça é visto em um rasante na Base Aérea de Santa Cruz. Arquivo/José de Alvarenga.

De um dia para o outro, as “turbinas” de Canoas e Santa Cruz se calaram. Técnicos ingleses vieram ao Brasil para inspecionar os aviões, que em sua maior parte foram estruturalmente condenados. Em outubro de 1966, o Esquadrão Pampa encerrou as atividades com os Meteor.

As aeronaves que ainda poderiam operar foram transferidas ao Grupo de Caça, e a unidade gaúcha recebeu os AT-33 Shooting Star/Thunderbird dos Estados Unidos. Em 1968, o 1º GAvCa aposentaram os F-8 e em 1971 o ocorreu o último voo de um TF-7, que na época voava apenas como rebocador alvos para treinamento de tiro aéreo.

O último dos cometas

Em 1969, em meio à desativação dos Gloster Meteor, um evento inusitado ocorreu no Parque de Aeronáutica de São Paulo, atual (PAMA-SP). A unidade com sede no Campo de Marte estava passando por uma reorganização, quando os militares encontraram um fuselagem completa de um F-8, encaixotada. A fuselagem foi adquirida em 1953, juntamente os materiais de suprimento e apoio dos jatos ingleses. 

Ao mesmo tempo em que os F-8 e TF-7 davam baixa, os técnicos da FAB embarcaram na missão de montar o último Meteor do Brasil. Após oito meses, nascia o FAB 4499, mais tarde rematriculado como 4460. Ao contrário dos outros Meteor, que ostentavam cores metálicas com detalhes coloridos, o F-8 4460 recebeu, em 1972, uma pintura camuflada, similar à usada pelos então novos AT-26 Xavante. 



Gloster Meteor preservado em frente à entrada da Base Aérea de Canoas. Foto: Gabriel Centeno.

Como os TF-7, o “novo” 4460 passou a ser usado como rebocador de alvos no Grupo de Caça, cumprindo essa função de 1970 até 1974, quando realizou seu último voo no Dia da Aviação de Caça. Hoje, o último meteoro brasileiro repousa no Museu Aeroespacial, no Rio de Janeiro, ao lado de um TF-7. 

Mais de 50 anos depois da sua baixa definitiva, os “caças de algodão” da FAB ainda podem ser encontrados por aí, preservados em praças e museus. Em Canoas (RS), por exemplo, é possível encontrar dois F-8, em frente à Base Aérea e na famosa Praça do Avião. 

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