Essa é a história da passagem dos Coronados na frota da Varig, desde os fatos envolvendo seus antecedentes até o encerramento de sua operação, em artigo com fotos históricas dividido em duas partes, esta primeira analisando o intrincado cenário que precedeu à entrada do avião em serviço pela empresa.
Em condições normais de “temperatura e pressão” uma empresa aérea geralmente tem premente necessidade de incorporar aeronaves novas à sua frota, que servem para lhe expandir a malha, melhorar serviços e introduzir material mais moderno de voo. Contudo, no caso da Varig e dos Convair 990, operados de 1963 a 1971, a companhia relutou por vários meios em receber o trio dessas verdadeiras “Maseratis aladas” encomendadas ainda pela REAL, conglomerado que foi incorporado pela empresa gaúcha em 1961. As aeronaves “indesejadas” acabaram mostrando-se providenciais e causaram sucesso entre os passageiros.
A REAL E A ENCOMENDA DOS CONVAIR 880
A história do Convair 990 na Varig começa tendo por protagonista a REAL, empresa fundada por Linneu Gomes em 1945 e que começou operando com DC-3 entre São Paulo e o Rio de Janeiro. A novata experimentou um crescimento vertiginoso, caracterizado pela aquisição de congêneres que então apinhavam o mercado nacional no período seguinte ao pós-guerra. De fato, em 1948 o alvo da REAL foi a Linhas Aéreas Wright, em 1950 a Linhas Aéreas Natal, em 1951 a Transcontinental, a Aerovias Brasil em 1954 (que operava linhas para os EUA) e, finalmente, em 1956, a Nacional Transportes Aéreos. Ao final dessa maratona de associações o conglomerado era conhecido como “REAL Aerovias e seu consórcio”.
Em 1957, ano em que faria a encomenda dos seus primeiros jatos, esse conglomerado servia a quase 200 cidades, voava com a maior frota de DC-3/C-47 do mundo (85 exemplares), detinha a sétima maior malha de rotas em extensão não duplicada no globo e empregava cerca de sete mil funcionários!
A REAL já tinha um próspero relacionamento com a Convair, fabricante norte-americana baseada em San Diego (Califórnia), voando com bimotores a pistão Convair 340 e 440 em suas linhas domésticas.
Aquela fábrica tinha desenvolvido seu primeiro jato de passageiros a partir de meados dos anos 1950 e que tomou o nome de Convair 880, um quadrirreator para pouco mais de 100 lugares, na mesma configuração “padrão” dos subsônicos de alta velocidade desenvolvida inicialmente pela Boeing em seu avião conceito Dash 80 (que deu origem às famílias 707 e KC-135): asas enflechadas, com quatro motores a reação, sendo um par em cada asa, suspensos por pylons, estabilizadores horizontais e vertical com enflechamento, trem de pouso triciclo.
Com as outras competidoras nacionais já se perfilhando para adquirir jatos (a Varig o Boeing 707 e o Sud Aviation Caravelle e a Panair os DC-8), a REAL bateu às portas da fabricante californiana, encomendando quatro Convair 880 em agosto de 1957, os quais estavam previstos para serem entregues a partir do início de 1960. A compra alcançava os US$ 17 milhões e incluía peças e motores de reposição. Os aviões viriam equipados em configuração de 40 assentos em primeira classe e 65 em classe turística.
Na época, a REAL já servia Chicago, Miami e Nova Orleans nos EUA e Assunção e Buenos Aires, planejando atender o Japão, via Los Angeles (ligação para a qual havia encomendado quatro Lockheed L-1049H e que seria inaugurada em julho de 1960, operando também com os DC-6B), bem como pretendia abrir rotas para Nova Iorque (cidade servida desde 1955 pela Varig) e Europa (então domínio exclusivo da Panair). Nesse cenário de franca expansão internacional, a vinda dos novos jatos seria de vital importância.
Contudo, em 19 de agosto de 1959, a ordem para a produção dos modelos 880 da REAL foi suspensa. Pessoal da empresa aérea já tinha até visitado a fábrica em San Diego e inspecionado as primeiras peças que comporiam as aeronaves.
Mas a REAL não havia desistido de empregar jatos e sim decidiu transferir o contrato para a aquisição de três modelos 990, o irmão ligeiramente maior, mais potente e com maior alcance do 880 e que foi inicialmente chamado de Modelo 30 ou Convair 600 Skylark. A Swissair, uma das lançadoras do projeto, cunhou o apelido de “Coronado” ao avião (nome da ilha que fica próxima à sede da Convair, em San Diego, e aqui no Brasil, extraoficialmente, esse apodo também foi utilizado para designar o 990). A REAL necessitava de maior alcance para que pudesse servir satisfatoriamente a linha para o Japão, que envolvia longas distâncias entre as escalas e o 990, com maior capacidade e tonelagem, se mostrava mais adequado.
O 990 prometia ser o jato subsônico de passageiros mais veloz do mundo, operando em cruzeiro de até Mach 0.91, equipado com motores aft-fan GE CJ805-23 que permitiam mais potência do que os jato puro que motorizavam o 880. Era uma jogada audaciosa da Convair (então uma divisão da General Dynamics) apostando no quesito velocidade numa época de preços de combustíveis relativamente estáveis e que pretendia seduzir passageiros e companhias aéreas. Contudo, como veremos, o avião apresentou sérios problemas de performance e não conseguiu fazer frente à produtividade dos 707 e DC-8, sendo construídos apenas 37 exemplares.
A VARIG HERDA OS CONVAIR 990
O rápido crescimento da REAL e sua onerosa superestrutura de negócios, com centenas de aeronaves e cidades servidas e empresas coligadas, aliada a um período recessivo experimentado no início dos anos 1960, deixou a gigante dos ares combalida financeiramente e Linneu Gomes atônito para se desfazer do império que havia criado – enquanto ainda havia tempo, pois o próprio fundador encontrava-se com a saúde debilitada.
A solução encontrada pelos setores governamentais a fim de evitar a quebra da REAL e suas desastrosas consequências num ambiente que aliava recessão econômica e agitação política (o Presidente Jânio Quadros viria a renunciar em agosto de 1961) foi a venda da empresa para a concorrente Varig – que se viu quase que obrigada a aceitar o negócio, sem maiores diligências legais. O negócio foi encetado da seguinte forma: primeiramente, a Varig adquiriu 50% das ações da Aerovias Brasília – o braço da REAL que detinha os direitos de tráfego internacional -, o que ocorreu em maio de 1961. A seguir, em agosto, a empresa gaúcha adquiriu o controle de 90% do capital da REAL, passando a deter o comando do conglomerado. Tinha acabado a curta, mas prolífica “ascensão e queda” daquela que tinha sido até recentemente a maior empresa aérea do país e uma das maiores do mundo ocidental.
Como herança da aquisição da REAL a Varig recebeu a obrigação de assumir a compra já negociada dos 990 (e também de cinco Lockheed L-188 Electra, adquiridos da American Airlines). À princípio, Ruben Berta, Presidente da Varig, não queria nem um nem outro avião, que acreditava serem modelos que não atendiam as necessidades de empresa.
Os 990 tinham previsão inicial de chegar ao Brasil em 13 de novembro e 17 e 21 de dezembro de 1961. Em 6 novembro de 1961, por exemplo, 25 técnicos de manutenção da REAL/Varig iniciavam na fábrica da Convair o curso do 990 que os habilitaria a realizar reparos de rotina nas aeronaves.
Já em relação à tripulação de voo, o jornal interno da construtora, em edição de 20 de dezembro de 1961, citava que 23 pilotos e engenheiros de voo brasileiros haviam recentemente chegado à Califórnia para iniciar um programa de cinco semanas para familiarização com os sistemas da aeronave e realização de voos de experiência (sendo 10 comandantes, 10 engenheiros de voo e três instrutores).
Contudo, apesar dos preparativos que indicavam estar próximo o recebimento dos Convair, já no início de 1962 começou a transparecer no horizonte que na realidade a Varig não estava disposta a incorporar os 990 em sua frota. As notícias veiculadas na imprensa davam conta de que era iminente o recebimento das aeronaves, que seriam utilizadas até o voo de Tóquio antes operado pela REAL (suspenso pela Varig quando da aquisição do Consórcio), mas agora com previsão de recebimento em janeiro, fevereiro e março de 1962. Logo depois, contudo, matéria do Noticiário Aeronáutico de 22 de março de 1962, informava que a Varig havia terminado de aprontar sua loja em Tóquio e que os voos para o Japão seriam reestabelecidos provavelmente em abril de 1963, mas adicionando que seriam utilizados os 707 na linha “até que se resolva em definitivo a compra ou o cancelamento dos CV-990”. Agora já se cogitava abertamente que os Coronados poderiam nem mesmo ser incorporados à frota…
O fato é que havia se estabelecido um impasse entre a Convair e a Varig, que chegou à barra dos tribunais – e que postergaria a chegada das aeronaves para o segundo trimestre de 1963. Nesse meio tempo, fabricante e transportadora tentaram, cada uma a seu lado, fazer prevalecer a posição defendida: a Varig dizendo que as aeronaves não cumpriam com a performance garantida pela fabricante, advogando o cancelamento da compra e a devolução dos depósitos já efetuados; a Convair insistindo no cumprimento do contrato por parte da Varig e que poderia adequar os aviões a fim de atingir a performance prometida inicialmente.
A “NOVELA VARIG – CONVAIR”
De fato, as garantias contratuais de alcance e velocidade fornecidas inicialmente pela Convair em relação ao 990 acabaram não se cumprindo quando foram realizados os voos de testes para certificação do avião junto à FAA. A aeronave apresentou sérios problemas de arrasto em regimes de alta velocidade, que levavam a consumir mais combustível e, em decorrência, impactavam negativamente em seu alcance projetado. Para corrigir essa limitação de performance, a fabricante teve de desenvolver um pacote de alterações aerodinâmicas na aeronave, que ficou conhecida então como 990A. Basicamente, foram redesenhados os flaps Krueger do bordo de ataque, adicionadas carenagens mais aerodinâmicas na área localizada entre o bordo de fuga das asas e a fuselagem, bem como adotadas novas naceles para os motores, com novo perfil, tudo para gerar menor arrasto, atingir as velocidades prometidas de cruzeiro e diminuir o consumo excessivo do avião.
A American Airlines, Swissair e Garuda, clientes iniciais do 990, receberam as aeronaves ainda sem as alterações desenvolvidas pela Convair, mas que foram incorporadas pelas próprias operadoras em suas oficinas, mediante o envio de um kit para instalação das modificações. Toda a adequação ao modelo “A” foi custeada pela própria fabricante, que também disponibilizou técnicos seus para acompanhar o “retrofit” junto aos clientes.
Entretanto, a Varig se recusou a aceitar a aeronave, ainda que com as modificações do modelo 990A propostas pela Convair e o impasse se aprofundou. A empresa, na realidade, estava desenvolvendo sua frota de jatos com base no Boeing 707 e Caravelle, tendo recebido dois exemplares de cada modelo entre 1959 e 1960 e pretendia encomendar novos exemplares. O Convair 990 nunca esteve nos planos da Varig e, como se viu acima, foi uma das “heranças” advindas da aquisição do grupo REAL em 1961. O fato é que a recusa da Varig ficou patente e tendo passado o prazo previsto para e entrega do trio de Coronados que já se encontravam nas cores da companha estacionados na fábrica de San Diego, a imprensa começou a veicular cada vez mais notícias do que poderia ser chamada de a “Novela Varig – Convair”.
Já em sua edição de 19 de março de 1962 a revista semanal Aviation Week dava conta na matéria “Impasse – Varig 990”, que a Convair notificara a companhia aérea brasileira por duas vezes de que as aeronaves se encontravam prontas para entrega, devendo ser pago o saldo do preço contratado (algo em torno de US$ 15 milhões, à época). A matéria aduzia que a empresa brasileira alegava que os Coronados não tinham condições de operações econômicas em pistas curtas ou localizadas em alta altitude, condição essencial para a operação em São Paulo (Congonhas), Bogotá e Cidade do México, no voo em direção à Los Angeles. Por outro lado, finalizava a revista, a Convair se recusava a devolver à Varig os depósitos da ordem de US$ 5 milhões já efetuados em seu favor para garantir a construção das aeronaves.
A “novela” seguia com seus capítulos no desenrolar do ano de 1962, com soluções que nunca se realizaram sendo noticiadas (tal qual a de que a Pan American ficaria com os aviões da Varig em troca da liberação dos depósitos pagos à Convair, ou de que a companhia brasileira trocaria com a Cunard Eagle, empresa de fretamentos inglesa, os 990 por dois 707-420 – da mesma série que a empresa gaúcha já operava, equipados com os motores Rolls-Royce Conway).
Certamente, a fabricante californiana já havia perdido as esperanças de uma solução amigável e em agosto de 1962 o Noticiário Aeronáutico, em edição do dia 23, informava que a Convair estava processando a Varig nos EUA por conta da falta de pagamento do contrato dos 990. O mesmo veículo, em edição subsequente de 13 de setembro, dizia que o caso não estava resolvido e que um 707 da Varig teria sido até arrestado pela justiça, quando estacionado em Nova Iorque, em virtude da ação judicial promovida pela Convair. Entretanto, a Varig tinha conseguido a liberação da aeronave no mesmo dia, finalizava a reportagem.
A solução da “novela” só ocorreu com um acordo entre as partes pela qual a Varig solicitou que a Convair demostrasse in loco a capacidade do Coronado em operar adequadamente nos aeroportos da linha do pacífico para a qual o avião estava destinado a voar e, principalmente, no Aeroporto de Congonhas – com sua acanhada pista de então 1.900 m de extensão.
O N5602G VEM AO BRASIL!
Para realizar a demonstração, a Convair destacou um dos 990A que estavam na fábrica, matriculado N5602G (s/n 2), que saiu de San Diego em direção a São Paulo na data de 10 de dezembro de 1962, escalando na Cidade do México, Bogotá e Lima, onde fez demonstrações à potenciais clientes e também comprovou a performance do Coronado nesses aeroportos (os dois primeiros localizados em relativa altitude). Neste périplo sul americano a aeronave esteve sob os cuidados do comandante Carrier, do primeiro oficial Knebel, engenheiro de voo Bloom, além de demais técnicos da Convair, num total de 14 pessoas.
O comandante Rubens Bordini, ex-Diretor da Varig, em seu livro “Céus Desconhecidos”, assim descreveu em detalhes como se deu o teste crítico com o “five six zero two golf” em Congonhas:
“Na chegada a esse aeroporto, havia um vento SE de 20 nós, com rajadas. Isso significava pousar na pista 16, que é a mais usada em Congonhas. No entanto, como desafio, o piloto americano pediu para pousar na pista 34 – com vento de cauda e morro abaixo – o que certamente seria uma proeza, com um quadrirreator grande, e para alguém que não conhecia o aeroporto. O pouso foi feito magistralmente e, na metade da pista o avião estava parado!
Após o necessário descanso dos pilotos americanos, programou-se um voo local de teste nas condições previstas no contrato. O avião foi carregado com sacos de areia até o peso máximo de pouso e, com representantes da Varig a bordo – incluindo Ruben Berta – foi feita a decolagem, cortando-se o motor 1 na V1, iniciando-se a decolagem na VR e saindo no chão na V2, conforme os padrões estabelecidos. Depois, o avião fez evoluções ao redor do aeroporto, sempre trirreator, e pousou em excelentes condições.”
Na mesma linha, o jornal corporativo General Dynamics News, edição de 9 de janeiro de 1963, celebrava os feitos do N5602G em Congonhas:
“No primeiro pouso, o avião parou dentro de 1.200 metros, saindo na primeira intersecção da pista.
Um dos pousos foi efetuado com teto de 450 pés e visibilidade de ¾ de milha e, ainda que tenha vindo com vento de cauda e “morro abaixo” (devido ao gradiente de declive da pista), somente foram utilizados 75% do seu comprimento total.”
A aeronave trazida pela Convair permaneceu em São Paulo por alguns dias efetuando pousos e decolagens sob as mais diversas condições e aberto para visitação, recebendo 2.500 pessoas a bordo. De Congonhas o N5602G retornou à fábrica em San Diego, via o Rio de Janeiro/Galeão (e dali para a Cidade do Panamá) tendo a perna entre as duas metrópoles brasileiras sido efetuada a Mach 0.87!
Com o sucesso da demonstração, a Varig finalmente aquiesceu em receber os 990A. Prova disso é que já em 20 de fevereiro de 1963, o Conselho Fiscal da empresa aprovava formalmente a compra dos três 990A (além de mais um 707-441, que seria recebido em novembro daquele mesmo ano, em substituição ao igual modelo que fora perdido em acidente fatal em Lima, Peru, em novembro de 1962).
Em edição de 20 de março de 1963, o “General Dynamics News”, dava conta de que a Varig receberia seus Coronados no mês seguinte e de que Ruben Berta havia declarado que os 990A haviam excedido “todos os requisitos durante os recentes voos de demonstração nas rotas da empresa e que a Varig pretendia colocá-los em operação o quanto antes.
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