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segunda-feira, 3 de julho de 2023

GÊNESIS DO BOEING 727

 

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O trijato Boeing 727-200 em voo. (Foto: Arquivo histórico da Boeing)

Tendo sido durante anos o avião comercial a jato mais produzido no mundo, com 1832 exemplares fabricados entre 1962 a 1984, o Boeing 727 foi a aeronave de curto e médio alcance de maior sucesso, até início dos anos 1990, quando esse lugar foi assumido definitivamente pelo seu “irmão” 737. O presente artigo, dividido em duas partes, procura detalhar como nasceu o clássico trijato, desde os primeiros esboços até a definição de sua configuração e encomendas dos lançadores do projeto.

“Jack, eu quero que você acabe com o programa do 727”!

Essa ordem nada auspiciosa recebida por Jack Steiner, engenheiro da Boeing que estava à frente do projeto 727 e era seu grande defensor, se acaso fosse cumprida, poderia ter mudado para sempre o futuro da Boeing e, porque não dizer, da própria aviação comercial como hoje a conhecemos.

Jack Steiner ao centro analisa uma série de modelos propspectivos do 727.

No entanto, o decidido Steiner que apostava toda sua já brilhante carreira no 727 (ele participara anteriormente como engenheiro de desenho preliminar no 707), refutou ao seu superior, Mynard Pennel, que o novo projeto tinha total viabilidade, tanto sob o ponto de vista técnico como de mercado, e que a entrada da fabricante de Seattle no disputado mercado de médio e pequeno alcance colocaria a Boeing definitivamente entre as grandes fornecedoras de jatos comerciais.

Porém, no início de 1958, quando a ordem de terminar com o projeto do 727 foi recebida por Steiner, a Boeing passava por uma crise econômica bastante palpável em sua divisão de transporte, fruto das várias alterações realizadas no 707 (que entraria em serviço regular pela Pan American em outubro daquele ano), com o fim de torná-lo mais competitivo possível. De fato, no 707, a Boeing desenvolveu versões domésticas e intercontinentais, mas com diferentes dimensões de fuselagem e planos de asas entre si; além de opção de três tipos diferentes de motores. Isso, sem olvidar que a largura original da fuselagem teve de ser aumentada para 148 polegadas a fim de poder transportar até seis passageiros por fileira em voos domésticos (exigência da American Airlines) – tudo isso acarretando custos de produção e deslocando para frente o ponto de retorno de investimento do programa. Registre-se que o 707 só passou a dar lucro a partir do ano de 1964, depois de já terem sido fabricadas 358 unidades.

Imagem conceitual do Boeing 727.

Steiner argumentava que a talentosa equipe de engenheiros e pessoal de fábrica constituída ao longo do projeto 707 era uma vantagem que não poderia ser desperdiçada e que o programa 727 se beneficiaria em muito com tal ativo de mão de obra altamente especializada.

A Boeing, defendia Steiner, precisava de um novo jato visando um mercado ainda não explorado por ela, se desejasse manter-se definitivamente no setor da aviação comercial. Os argumentos convenceram os superiores de Steiner e a decisão de terminar com o 727 foi abandonada.

O desafio técnico

O 727 seria o primeiro jato a ser desenvolvido para operar em segmentos de curtas e médias distâncias, com capacidade de pouso (até 1.500m) e decolagem (1.800m a 2.100m) em pistas mais reduzidas e, para obter a efetiva produtividade exigida pelas companhias aéreas, tinha necessidade de alta velocidade de cruzeiro e baixa no segmento da aproximação e pouso.

Ademais, o avião deveria ter razão de subida e descida acentuadas, que possibilitassem o menor tempo possível de voo entre o “top of descent” e o pouso e entre a decolagem e o segmento inicial de subida. Tudo isso, com o menor ruído possível e, claro, com a devida operação lucrativa da aeronave por parte das empresas aéreas.

Modelo de tunel de vento do 727.

De fato, um dos critérios estabelecidos pela Boeing, objetivando as vendas para o lucrativo mercado de linhas domésticas dos EUA, seria a necessidade da operação do 727 na curta pista 4/22 do aeroporto de La Guardia, em Nova Iorque, a única então equipada com ILS e que então media pouco mais de 1.600m de extensão. Ainda, para atender à United Airlines que mostrava interesse na aeronave, o 727 deveria operar desde Denver (“hub” da empresa no oeste dos EUA), aeroporto situado a cerca de 3 mil metros de altitude, levando em conta uma temperatura de 32ºC, com ao menos 70% da ocupação máxima (então prevista para até 100 passageiros) e com alcance e reservas IFR para um voo até Chicago. Relembre-se que à época, os motores a jato turbofan, recém-desenvolvidos, tinham pouca taxa de derivação e potência total, tornando a operação em tais condições um desafio para a tecnologia disponível nos motores à reação.

No quadro a seguir, observam-se algumas das especificações delineadas pelas principais empresas aéreas dos Estados Unidos em relação ao projeto em estudos pela Boeing que resultaria no 727.

Especificações do Projeto 727 desejadas pelas Trunk Carriers dos EUA

Empresa AéreaQuantos Motores?Qual Largura de Fuselagem?
(em polegadas)
Quantos Passageiros em 1ª Classe?Cumprimento da Pista para Pouso?
(em pés)
Máximo Alcance?
(nm)
American2 ou 3136 ou 148*64-684.7001.000
Eastern3148*721.500
TWA2 ou 3148*654.5001.000
United4148*685.2001.500

OBS: 148 polegadas era a mesma largura de fuselagem do 707

Uma asa “desmontável”!

A fim de atender aos requisitos técnicos que guiavam o projeto, os engenheiros de Seattle viram-se desafiados a desenvolver uma asa que fosse ao mesmo tempo de alta eficiência aerodinâmica, tanto em regime de cruzeiro como em baixas velocidades, além de permitir sustentação necessária para decolagens a partir de pistas de pouco comprimento.

A elaborada configuração da asa do 727.

A solução foi um design revolucionário de asa, que era limpa como uma lâmina quando em regime de cruzeiro, com enflechamento de 32,5º, (não tão pronunciado como no 707, que tinha 37º de enflechamento), com características de ótima manobralidade a baixas velocidades, dotada de uma série de dispositivos aerodinâmicos que quando atuados em conjunto pareciam indicar que a asa iria “desmontar”…

Com efeito, no bordo de ataque foram instalados “slats” e flaps do tipo Krüger, que permitiam o controle da camada de fluxo, sem “descolamento” em regimes de baixa velocidade ou ângulos de ataque mais acentuados. No extradorso, um conjunto de spoilers, que eram atuados para quebrar a sustentação e também servindo para controle lateral, dependendo da gama de velocidade da aeronave. E, a grande novidade: no bordo de fuga dois grandes falas de fenda tripla, que quando estendidos aumentavam a área da asa significativamente para decolagem e, em graus mais elevados para pouso, mantinham a sustentação a baixa velocidade. Essa asa transformava o 727 em termos de manobralidade e performance de um avião a jato em um avião turboélice, dependendo do segmento de voo, permitindo sua operação no cenário pretendido – voos domésticos de curta/média duração em aeroportos de comunidades menores ou centrais, com pistas de comprimento reduzido.

Esquema de funcionamento dos falas do 727 em regimes de voo de cruzeiro, pouso e decolagem.

O coeficiente máximo de sustentação da asa do 727, de fator 2.8 (com full flaps a 40º), não tinha equivalente com qualquer aeronave contemporânea e demonstra a capacidade dos engenheiros da Boeing em atingir e mesmo exceder as proposições de desempenho desejadas.

Quantos motores, onde colocá-los e quais?

No que se refere à definição da motorização do Boeing 727, apresentaram-se três questões básicas, nesta ordem: quantos motores iriam ser instalados, em que posição na aeronave e, finalmente, qual a fabricante a ser selecionada.

Uma das configurações de 727 estudadas com motores nas asas.

O primeiro quesito, relativo ao número de motores, era complexo e envolvia questões de preferências dos clientes potenciais, bem como de segurança e despacho da aeronave em condições de visibilidade reduzida.

A configuração inicialmente pensada pela Boeing envolvia o uso de quatro motores, no que seria um Boeing 720 de menor comprimento e que traria menor custo de desenvolvimento e produção para a fabricante. Contudo, para uma aeronave que deveria operar em médias e curtas distâncias a utilização de quatro motores se mostrava antieconômica e não agradava a maioria dos potenciais clientes prospectados – com exceção da United, que achava a configuração vantajosa para decolagens desde Denver, em condições “hot and high”.

A Asa do 727 com seus grandes flaps de fenda tripla spoilers e slats em ação.

Por sua vez, a Eastern, outra cliente bastante interessada no 727, entendia que um avião bimotor seria o mais aconselhável para rotas curtas e, também, sob o ponto de vista de economia operacional, com redução de gastos de manutenção e combustível.

A Boeing, considerando os critérios das duas maiores empresas aéreas incentivadoras do 727, decidiu-se por uma solução de meio termo, optando equipar o avião com três motores, o que, no dizer de Jack Steiner, foi o fator determinante em escolher aquele número de reatores.

Além disso, os engenheiros pontuavam que o avião trijato teria maior razão de despacho, visto que em caso de operação com mínimos IFR, o birreator teria mais restrições de decolagem, pois na hipótese de falha de um dos motores e necessidade de retorno ao aeroporto, a regulamentação de então previa uma diferença entre o mínimo de visibilidade para pouso com dois ou apenas um motor operacional – em favor do primeiro.

As primeiras PW JT8D sendo montadas para o 727.

Definido o número de propulsores, a questão agora seria estabelecer a posição mais propícia para colocá-los, levando em conta aspectos operacionais, estruturais e aerodinâmicos.

Tendo em vista a utilização de três motores, ao menos um deles teria de ser instalado na seção traseira da aeronave, permanecendo a dúvida de onde instalar os demais. Jack Steiner ordenou que fossem montados dois “times” de engenheiros competindo para definir a melhor configuração final, sendo uma com os dois motores em cada asa e a outra com os motores na cauda.

Ao fim de estudos que se desenvolveram com os dois “times”, a configuração dos três reatores na cauda foi a vencedora. Esta tinha como vantagens: menor ruído interno na cabine de passageiros, redução dos efeitos de assimetria no caso de perda de um dos motores externos (que estavam localizados mais próximos da linha central da fuselagem) e redução de custos com cabeamentos elétricos e periféricos. Além disso, a asa ficava mais “limpa”, sem interferência de motores e pylons no fluxo aerodinâmico, com redução do arrasto.

Uma escada de acesso para aeronave foi colocada na parte traseira, embaixo do motor central.

Quanto à qual fabricante escolher para motorizar o trijato, a princípio havia sido definido logo que a configuração básica da aeronave fora estabelecida que o 727 seria propulsado pelos Rolls Royce ARB 963 de 13 mil libras de empuxo máximo. Eles seriam fabricados sob licença nos Estados Unidos pela Allison, que então, dentre outros, produzia os motores turboélices dos L-188 Electra e C-130 Hercules.

Entretanto, os clientes americanos não demonstravam confiança na Allison de montar o reator sob licença (que já enfrentava problemas com os modelos ‘501D do Electra) e temiam que a Rolls Royce não conseguisse suprir adequadamente de peças sobressalentes as companhias áreas do outro lado do Atlântico. Outra razão era que o motor Spey já havia atingido todo seu potencial, sendo que as companhias aéreas norte-americanas e, principalmente a Eastern, pretendiam utilizar um motor que tivesse capacidade de crescimento, que fosse mais adequado a versões posteriores do 727 – com maiores pesos operacionais e alcance – o que se mostrou verdadeiro, quando a série alongada ‘200 foi desenvolvida a partir de 1965.

Em Boeing Field durante a certificação da aeronave os dois primeiros 727.

Assim, a equipe de engenheiros da Boeing se voltou para a Pratt & Whitney e seu motor J52 que então equipava o Grumman A6 Intruder, caça da marinha dos EUA. A P&W assumiu o risco de “civilizar” o motor para o projeto comercial do 727 e daí nasceria o hoje icônico motor JT8D que equipou uma geração inteira de aeronaves comerciais e deve dessa forma muito de seu sucesso ao trijato da Boeing.

O sistema hidráulico a la Electra

Para o sistema de comandos de voo, devido à missão de voos médios e curtos em um envelope de voo bastante elástico, com necessidade de alta manobralidade como previsto pelo 727, a Boeing planejava um sistema que aliviasse as forças exigidas para manobrar a aeronave, com acionamento de leme, ailerons e profundores (além de flaps, slats, spoilers) assistidos hidraulicamente (no 707, os comandos primários de voo – com exceção do leme – eram acionados por cabos e polias que estavam ligados a “servo tabs” nas superfícies aerodinâmicas).

Visão privilegiada dos flaps do 727.

Para tal, a fabricante buscava um sistema de comando de voos que fosse similar ao L-188 Electra, então considerado o melhor nesse aspecto entre os aviões comerciais. Um episódio quase anedótico resolveu a questão.

Ocorre que engenheiro que fora o responsável pela elaboração do sistema hidráulico do Electra na Lockheed, Bob Richolt, encontrava-se gozando de uma merecida aposentadoria, tendo comprado um iate no qual viajava pela costa e rios navegáveis dos EUA. Por um acaso, o barco estava ancorado no Lago União, próximo à Seattle, na época em que se procurava definir a questão do sistema de comandos do 727. O pessoal da Boeing procurou Richolt e disse que ele poderia comprar um iate melhor se fosse trabalhar para a Boeing no sistema de comandos hidráulico do 727. Richolt concordou e o 727 é até hoje reconhecido pelos pilotos como um dos melhores aviões em termos de agilidade de comandos.

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